Paulo Freire, mais de duas décadas depois

Passados 21 anos da morte de Paulo Freire, o Jornal da PUC-SP faz um breve panorama da história, o legado e sua vivência na Universidade

por Mara Fagundes e TV PUC | 02/05/2018

“Um grande professor é aquele que continua ensinando, e muito, mesmo depois de não estar mais entre nós.” É assim que o filósofo Mario Sergio Cortella define o amigo e colega de profissão Paulo Reglus Neves Freire, passados 20 anos de sua morte. Nos 17 de convivência, talvez seja única a reclamação a fazer daquele que ele considera “mais insubstituível” do que os demais. “Não o perdoo por ele ter nos deixado dias antes da minha defesa de doutorado”, afirma Cortella, ao se referir sobre a escolha às pressas de um novo orientador após a morte do educador, em 2 de maio de 1997.

Paulo Freire não é unanimidade nem nunca desejou ser. Quem esteve próximo ao educador, considerado um dos mais notáveis do século 20, garante que o Patrono da Educação Brasileira buscava inspirar, e não ser copiado. Seja para a inspiração, imitação ou contestação, os números mostram o quanto seu pensamento é estudado. Considerada sua obra mais completa e importante entre dezenas de outras, o livro Pedagogia do Oprimido, escrito durante o exílio, quando ainda morava no Chile, em 1968, foi traduzido para mais de 20 idiomas. Somente na Capes, são 1.843 dissertações e teses que trabalham com “referenciais freirianos” nos seus estudos.

O pernambucano conquistou 41 títulos de doutor Honoris Causa, em 27 universidades. Diversos países criaram institutos para estudar seu pensamento, entre eles Alemanha, Estados Unidos, China e Israel. É cidadão honorário de várias cidades no Brasil, e até nome de rua na Bahia. Instituições nacionais e estrangeiras criaram centros de documentação, informação, divulgação e estudo sobre Paulo Freire. As Cátedras que levam seu nome estão presentes em nove países – uma delas na PUC-SP.

Foi no ano de 1979 que ele, após um período de exílio, desembarcou na Universidade a convite de Dom Paulo Evaristo Arns, então grão-chanceler. Esteve na Universidade durante 17 anos como docente do Pós em Educação: Currículo, período lembrado com saudade pela professora Ana Maria Saul, coordenadora da Cátedra Paulo Freire da PUC-SP:

 

Na década de 1960, ainda no Nordeste, o trabalho de Paulo Freire ganhou destaque com projetos como a Campanha de Alfabetização de Angicos que, em 45 dias, ensinou trabalhadores rurais a ler e a escrever. Ao ver resultados, Paulo passou a difundir a educação como prática de liberdade e a mostrar que ela tem papel imprescindível no processo de conscientização e nos movimentos de massa. Considerava a educação não uma questão pedagógica, mas, sobretudo política, o que mais à frente, e até os dias atuais, faria com que sua metodologia dividisse opiniões e, ao mesmo tempo, se tornasse um importante legado na opinião de Mario Sergio Cortella:

Educação e política sempre andaram juntas na vida de Paulo Freire. O educador, filiado ao Partidos dos Trabalhadores (PT) – o qual ajudou a fundar na década de 1980 –, assumiu em 1989 a Secretaria Municipal de Educação de São Paulo, a convite da então prefeita Luiza Erundina. “Passei a fazer parte da equipe e, por um ano, fui secretário-adjunto dele; depois, tive o orgulho de ocupar o seu lugar”, lembra Cortella. A professora Ana Maria Saul também integrou a equipe da pasta como coordenadora da Diretoria de Orientação Técnica, que cuidava da formação permanente dos educadores e da reorientação curricular. “Ele sempre dizia: ‘olha, Ana Maria, agora é hora de fazermos na prática o que falamos em sala de aula’.” Como secretário de Educação, Paulo Freire atuou na estruturação dos colegiados, na reformulação do currículo escolar e capacitação de professores.

“As mudanças estruturais mais importantes introduzidas na escola incidiram sobre a autonomia da escola.” Paulo Freire

Deixou a secretaria em 1991, quando passou a se dedicar novamente a escrever livros e artigos até sua morte, em maio do mesmo ano. Segundo Cortella, as críticas à Paulo Freire, muitas delas por seu posicionamento pedagógico-político, são compreensíveis: “É claro que suecos, dinamarqueses, norte-americanos, são povos que homenageiam Paulo, criam cátedras com o nome dele, pois é evidente que o grande confronto negativo em relação a sua perspectiva se daria mesmo no Brasil, onde ele teve a sua prática, a sua opinião. A unanimidade seria estranha”.

O filósofo ressalta o que considera o maior legado da obra de Freire:

Para a professora Ana Maria Saul, graças à Freire, se construiu uma nova forma de ver a sociedade, uma herança que, segundo ela, foi fundamental para a educação no Brasil:

Nascido em Pernambuco, em 19 de setembro de 1921, Paulo Freire teve uma infância humilde. Aos 22 anos, ingressou na Faculdade de Direito, na época, única alternativa na área de Ciências Humanas. Foi quando conheceu a professora primária Elza Maia Costa Oliveira, com quem se casou em 1944 e teve cinco filhos.

Neste mesmo período, descobriu o gosto por ensinar quando recebeu o convite para ser professor de Língua Portuguesa no colégio que, na adolescência, o acolheu como aluno bolsista. Sua dedicação à alfabetização de adultos teve início na década de 1940, quando foi diretor do setor de educação do Serviço Social da Indústria (SESI) do Recife. Diante da necessidade de trabalhadores e familiares, desenvolveu uma educação popular, que buscava alcançar as camadas menos favorecidas da população. Foi um dos fundadores do Movimento de Cultura Popular do Recife, onde trabalhou para assegurar a inserção crítica das classes consideradas oprimidas da sociedade brasileira. Após a experiência de Angicos, foi convidado pelo então governo de João Goulart para coordenar o Programa Nacional de Alfabetização, com o objetivo de ensinar 5 milhões de adultos em mais de 20 mil círculos de cultura. O plano foi extinto com o Golpe de 1964 e Paulo Freire foi preso por duas vezes. A embaixada da Bolívia foi a única que o aceitou como refugiado político e, em setembro do mesmo ano, ele deixou o País rumo ao exílio.

Longe do Brasil, seu trabalho ganhou notoriedade internacional. Em dois meses, deixou La Paz  e se estabeleceu no Chile, onde viveu até 1969, quando foi convidado para lecionar em Harvard, nos Estados Unidos, e para integrar o Conselho Mundial das Igrejas, na Suíça, onde também fundou o Instituto de Ação Cultural, que tinha como foco prestar serviços educativos, especialmente aos países do Terceiro Mundo. Graças a um mandado de segurança, conseguiu o passaporte para retornar ao Brasil no fim da década de 1970.

“Para mim, o exílio foi profundamente pedagógico. Quando exilado, tomei distância do Brasil, comecei a compreender-me e a compreendê-lo melhor.”
(Trecho de uma conversa com Frei Betto, extraída do livro “Essa escola chamada vida” (pp. 56-8) – in Paulo Freire: uma biobibliogfrafia)

 


Cátedra Paulo FreireAprendo muito na PUC-SP”

Um ano após o falecimento de Paulo Freire, o Pós em Educação: Currículo propôs à Reitoria a criação de uma cátedra em homenagem ao educador. Os trabalhos tiveram início no ano de 1998 e, desde então, a cátedra se tornou uma disciplina do programa, com o objetivo de aprofundar os estudos sobre o legado de Paulo Freire e trabalhar em reinvenções de seu pensamento.

Segundo a coordenadora, professora Ana Maria Saul, pela cátedra, que é aberta a todos os alunos da Universidade interessados no pensamento freiriano, já passaram mais de mil alunos. “Recebemos estudantes de diversas áreas do conhecimento, que estão em busca dessa compreensão que humaniza e tem a perspectiva da transformação social e uma perspectiva de justiça social”, ressalta.

Na Cátedra, a docente coordena uma pesquisa que analisa a influência e o legado de Paulo Freire nos dias atuais. Apoiada pelo CNPq, ela já está na terceira edição e conta com a participação de 14 programas de Pós-Graduação no Brasil, sediados em 11 Estados. “Fazemos a verticalização dos estudos e olhamos com profundidade os conceitos de Paulo Freire, como se articulam com outros conceitos da própria obra, com outros autores. Não é uma obra que você olha uma vez e não tem mais nada para ver. É uma obra que faz, que se refaz, e na qual a gente busca cada vez mais produções, interpretações e releituras – o que possibilita, como ele mesmo queria, a reinvenção de sua obra”, explica Ana Maria Saul.

 


Instituto Paulo Freire

Em 2017, o Instituto Paulo Freire disponibilizou o acesso a mais de 30.000 páginas de texto, mais de 500 fotos, 100 vídeos e cerca de 2.000 mil páginas de obras em áudio de Paulo Freire. A reportagem do J.PUC conversou com a coordenadora do setor de Memória Institucional do Instituto Paulo Freire, Fernanda Soares de Campos:

J.PUC – O que é o projeto Memórias do Patrono da Educação Brasileira?
Fernanda –
O projeto é, centralmente, uma iniciativa em prol da democratização, de modo gratuito, aberto, irrestrito às produções do educador Paulo Freire e a ele relacionadas, além de uma extensa pesquisa no campo de suas memórias pelo Brasil e pelo mundo. Cuidar da memória de Paulo Freire é cuidar do patrimônio educacional do País. Objetos tridimensionais de seu acervo também são preservados e divulgados para acesso público. O Instituto Paulo Freire e o Centro de Referência Paulo Freire, como organizações de interesse público, desde o início de sua história, como evidenciado no breve histórico, têm servido a esta causa e têm “estado a serviço da sociedade e do seu desenvolvimento”. Aliado a isto, também em consonância com a política, inspirados por Paulo Freire e pelos valores democráticos, o Instituto sempre pautou no discurso e exerceu na prática a gestão democrática, inclusive promovendo diversos projetos nesta direção.

J.PUC – Como ele foi desenvolvido?
Fernanda –
Por meio da criação de uma metodologia para o trabalho de preservação museal e arquivística. O projeto foi planejado e executado em 8 meses, com ações que desenvolvem minuciosamente a manutenção do acervo com alguns passos principais:

  • Atualização do levantamento inicial realizado da quantidade de diplomas, certificados, objetos tridimensionais, arquivos constando documentos pessoais e produção de terceiros sopre Paulo Freire
  • Organização do acervo Moacir Gadotti (filósofo, doutor em educação e Pesquisador de Paulo Freire), além de honrarias certificadas ao educador em vida e pós-morte
  • Tombamento com a notação do plano de classificação do acervo de Paulo Freire
  • Digitalização e padronização dos arquivos digitalizados
  • Catalogação e submissão ao repositório digital
  • Organização física e arquivamento dos originais

J.PUC – O que consta no acervo agora disponibilizado?
Fernanda – Os materiais citados acima, além de fotografias, vídeos, áudios e demais documentos de produção do educador, bem como produção sobre ele disponíveis para download. Todo acervo encontra-se disponibilizado nos seguintes endereços eletrônicos www.acervo.paulofreire.org e www.gadotti.org.br

J.PUC – Poderia citar materiais que mereçam destaque, como documentos importantes ou curiosidades presentes no acervo?
Fernanda – Muitos são os objetos em destaque, mas elencamos aqui alguns:

Diploma de Honoris Causa da Universidade Federal de Santa Maria

Medalha de Ordem ao Mérito dos Caetés, Olinda

Caminhos de Paulo Freire

'A educação é um ato político'

J.PUC – Quem pode ter acesso ao acervo?
Fernanda – Toda e qualquer pessoa interessada pela sua vida e obra.

“Ninguém educa ninguém, ninguém se educa sozinho. As pessoas se educam reciprocamente numa relação, mediatizados pelo mundo. Ninguém é só aluno, ninguém é só professor.” Paulo Freire

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