O luto e os mais de 300 mil mortos por Covid-19 no Brasil

“Vivemos um luto como nunca, com o medo também presente”, afirma professora Maria Helena Pereira Franco

por Mara Fagundes | 24/03/2021

A marca de mais de trezentas mil pessoas vítimas da Covid-19 no Brasil, com recordes diários no número de brasileiros que perdem suas vidas por causa da doença, faz com que a morte e a dor se tornem parte do cotidiano. Mas agora com um novo componente: o medo.

Se desde o início da pandemia a vivência do luto passou por diversas mudanças, impostas também pelas restrições sanitárias, com caixões lacrados e sem os chamados rituais de despedida, como velórios e celebrações religiosas, agora as famílias enlutadas e a população de uma forma geral encaram a morte também com o pavor de serem infectadas pelo vírus.

Para a psicóloga Maria Helena Pereira Franco, coordenadora do Laboratório de Estudos e Intervenções sobre Luto da PUC-SP, estamos diante de um novo luto. “Vivemos certamente um luto como nunca, porque ele é, ao mesmo tempo, coletivo e individual, é vivido privadamente e também em público. As restrições sanitárias impuseram a não permissão para os rituais que são fundamentais para a reunião de despedida do falecido. O medo está também presente nesse luto, ativado diariamente, incessantemente, com as notícias sobre o número crescente de mortes. O peso da experiência coletiva por um lado cria cadeias de solidariedade, mas também apresenta um cenário aterrorizante, de medo e impotência. Não poder estar junto para compartilhar sentimentos e gestos de apoio também é uma mudança importante, que afeta as pessoas em luto, deixando-as com uma experiência dolorida de desamparo”.

Os rastros assustadores da pandemia no Brasil após um ano não mudaram a postura negacionista do governo federal, que insiste em minimizar a potência do vírus, permanece contra o isolamento social, critica os Estados que adotaram medidas determinando restrições de circulação de pessoas e tem reforçado uma postura ineficiente do Ministério da Saúde em relação à vacinação em massa da população. O país já ultrapassou a marca de 15 mil mortes semanais, o que representa acima de 70 falecimentos por milhão de habitantes, superando o pior índice registrado por semana pelos Estados Unidos.

Apesar do cenário negativo, parte da população ainda se recusa a usar máscaras ou a aderir ao isolamento social, colocando em risco a vida de outras pessoas, mesmo com o número de mortes em ascensão. Na avaliação da especialista, a negação dessa parcela de brasileiros é também uma tentativa de dominar o medo de morrer. “Eu entendo que se trata de um mecanismo psíquico de negação na tentativa de dominar o medo de morrer e de perder pessoas queridas. Algo como acreditar que é mais poderoso do que esse vírus, que é super potente para enfrentá-lo. Quanto maior o medo, mais frequente esse comportamento de fingir que ele não existe. A questão não é entre quem se comporta assim e aquele que vive uma perda. É entre o medo da morte e a ingênua tentativa de não ter esse medo”, afirma Maria Helena Pereira Franco.

O fato de muitos brasileiros perderem mais de um familiar ou amigo para a doença traz um agravante que exige providências urgentes por parte do poder público e da iniciativa privada, ressalta a professora. “Tenho atendido com muita frequência pessoas que perderam diversos entes queridos, entre amigos e familiares. A experiência de desamparo, de se avaliar como incapaz de enfrentar as mudanças decorrentes dessas mortes é a tônica desse luto. Há relatos verdadeiramente trágicos, famílias das quais sobrevive apenas um adolescente, após a morte dos pais, avós, tios, ou mesmo um idoso dependente de ajuda nas atividades cotidianas. Tanto o poder público, como as iniciativas privadas deverão dedicar atenção a situações como estas, pelo risco de desestabilização social, por exemplo”.

A coordenadora do Laboratório de Estudos e Intervenções sobre o Luto da PUC-SP não tem dúvidas de que, com a pandemia e a partir dela, a morte não será mais enfrentada da mesma forma. “Criar condições para reuniões para compartilhamento da dor, fazendo uso de recursos tecnológicos, me parece uma condição que veio para ficar. Nós, brasileiros, gostamos muito de abraçar, ficar fisicamente próximos, e desde março de 2020 tivemos que nos entender com as mudanças. Por um tempo indefinido, a proximidade física e afetiva representará um risco à saúde, mesmo à vida de alguém que amamos. Nossas expressões de solidariedade têm sido redesenhadas e isso é um comportamento adaptativo saudável, por mais que nos cause incômodo”.

 

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