O FBI e a Polícia Federal, parceiros de longa data

por Priscila Villela | 06 / 07 / 2020 - 12 h

Novas revelações sobre relações entre o FBI e a PF reforçam um longo histórico de cooperação entre agências policiais norte-americanas e brasileiras. Nesse texto, Priscila Villela, pesquisadora do Núcleo de Estudos Transnacionais de Segurança (NETS/PUC-SP) e do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (GECI/PUC-SP), resgata essa trajetória de cooperação que perpassa temas tão diversos quanto o combate ao tráfico de drogas, lavagem de dinheiro, terrorismo e corrupção. A autora acaba de defender sua tese de doutorado pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP) dedicada a compreender as relações entre a DEA e a Polícia Federal no combate ao tráfico de drogas.

A Agência Pública, em parceria com o The Intercept, vazaram nesses último dois dias (1 e 2 de julho de 2020) diálogos que evidenciam as relações íntimas entre o FBI e a Polícia Federal na investigação da Lava-Jato. Segundo a reportagem indica, essa articulação foi decisiva para que a operação tomasse proporções internacionais e, por consequência, desestabilizasse o governo Dilma Rousseff, corporações brasileiras e a política do país de maneira geral.

Se a reportagem revela que a Lava Jato foi uma das mais importantes investigações que articulou parcerias entre a Polícia Federal e o FBI, cabe ressaltar que ela não foi a única, como desenvolvo em minha tese de doutorado recém concluída. Tal relação data da década de 1970, fruto de um acordo bilateral entre os países, que permitiu a transferência de recursos financeiros e equipamentos às polícias brasileiras. Nesse mesmo período, a Drug Enforcement Administration (DEA) foi criada e, desde então, também mantém proximidade com agentes da Polícia Federal a partir de seus escritórios em Brasília, São Paulo e, mais recentemente, no Rio de Janeiro.

Por muito tempo, a agenda de combate às drogas pautou a aproximação entre as polícias norte-americanas e brasileiras. Por meio dessa parceria, o FBI e a DEA puderam transferir recursos, tecnologia e treinar polícias brasileiras, financiar e propor operações conjuntas, bem como influenciar na formulação de leis e políticas públicas voltadas ao combate às drogas. Para citar um exemplo marcante, essa cooperação foi responsável pela captura e prisão do famoso traficante, Fernandinho Beira-Mar, em 2001.

Esse esforço se manteve. Sergio Moro, enquanto ministro da justiça, realizou uma viagem aos Estados Unidos, onde assumiu compromissos na sede da DEA e no centro de treinamento policial do FBI em Virgínia. Naquela ocasião, reforçou seu interesse em estreitar as relações entre as polícias brasileira e norte-americanas.

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Progressivamente, outros temas assumiram o centro das preocupações do FBI e da DEA no Brasil, como o terrorismo, a lavagem de dinheiro e a corrupção, como evidencia o caso da Lava Jato. A Lei nº 9.613/98, que criminaliza a lavagem de dinheiro, foi aprovada como resultado de uma pressão direta dos Estados Unidos sobre o governo brasileiro. Antes mesmo de sua aprovação, promotores e policiais brasileiros já recebiam treinamento a esse respeito.

Após os atentados de 11 de setembro, a agenda do contraterrorismo também foi incorporada a essas relações. No início dos anos 2000, agentes do FBI no Brasil receberam uma determinação de Washington para que monitorassem todas as mesquitas, aiatolás e líderes da comunidade muçulmana no Brasil e fizessem uma lista de suspeitos que pudessem ser investigados. Posteriormente, a realização dos megaeventos – Jogos Pan Americanos, Copa do Mundo e Olimpíadas – trouxeram à tona novamente a preocupação com o terrorismo. Voltados a esse fim, policiais de Los Angeles, Chicago, do FBI e de empresas privadas de segurança organizaram seminários e treinamentos direcionados à Polícia Federal. Nesse contexto, e por pressão dos Estados Unidos, também foi viabilizada a aprovação da Lei Antiterrorismo no Brasil (Lei nº 13.260/16), tema debatido na tese de doutorado defendida por Mariana Bernussi, também pesquisadora do Núcleo de Estudos Transnacionais de Segurança (NETS) e do GECI.

A reportagem também atesta que a agenda sobre a qual as relações entre o FBI e a Polícia Federal se estabelece se transformou ao longo do tempo. A agente do FBI responsável pela Operação Lava Jato no Brasil, Leslie R. Backchies, chegou a trabalhar na Divisão de Segurança Nacional do FBI, atuando em áreas de contraterrorismo e resposta a armas de destruição em massa, até que foi designada a cuidar de casos de corrupção e lavagem de dinheiro na América Latina, especialmente no Brasil. Em 2014 assumiu a função de dar suporte à Lava Jato, tornando o combate à corrupção o foco da articulação entre as polícias. Sergio Moro, segundo documentos do Wikileaks, ainda enquanto juiz, também chegou a receber treinamento de agências policiais norte-americanas, o que certamente facilitou o envolvimento do FBI na operação.  Ou seja, essa parceria se reinventa. A Lava Jato acabou, mas o FBI ainda tem muito o que investigar no Brasil, segundo David Brassanini, representante chefe da agência no Brasil, no 7º Congresso Internacional de Compliance, em 2019.

Fica evidente também na reportagem o modus operandi das agências policiais norte-americanas em países estrangeiros. Conferências, eventos, treinamentos auxiliam não só na transferência de conhecimento, como na construção de hubs de relacionamento íntimos e de confiança entre os agentes de justiça de ambos os países. Há um deliberado esforço em criar relações de confiança com autoridades brasileiras, construindo um canal direto entre as polícias, de maneira que possam influenciar o trabalho policial, investigações, formulação de leis e políticas públicas.

A reportagem menciona um evento promovido em 2018 por um escritório de advocacia em São Paulo, o CKR Law, onde estiveram presentes agentes policiais brasileiros e norte-americanos para debater as investigações contra corrupção no Brasil. O objetivo é construir canais de comunicação que possam se sustentar paralelamente às relações governamentais. Há, portanto, um fluxo de relações transnacionais entre agentes norte-americanos, brasileiros, públicos e privados que estabelecem redes de confiança a partir de onde compartilham de conhecimento, tecnologia e recursos. Essas articulações não estão isentas de hierarquias e de relações de poder. Os recursos políticos, econômicos, tecnológicos e o prestígio que podem ser mobilizados pelo FBI o tornam uma liderança nesse processo. São as agências estadunidenses que oferecem es recursos e conhecimento às instituições brasileiras, não o contrário.

A capacidade que agências norte-americanas, como o FBI, tiveram de disseminar seus conhecimentos e diretrizes esteve relacionada à construção bem-sucedida de prestígio perante a Polícia Federal e a uma rede transnacional de policiamento, em nível global. Os diálogos mostram que os policiais brasileiros se sentiam prestigiados com a proximidade da agente do FBI. Como descreve a reportagem, “mostrando familiaridade com a agente americana, Deltan Dallagnol se entusiasma e diz que a imagem lembra o filme Missão Impossível, estrelado por Tom Cruise. ‘Legal a foto! A Leslie está em todas rs’.”. Como parte dessa aproximação, Thaméa Danelon, ex-coordenadora da Força-Tarefa em São Paulo, foi convidada a apresentar a Operação Lava Jato em Washington e se sentiu extremamente prestigiada por esse reconhecimento.

Outro ponto marcante é a informalidade que marca essas relações. As investigações conjuntas, o intercâmbio de evidências e pedidos de extradição não tramitaram pelo Ministério da Justiça, em parte pela desconfiança que ambas as instituições tinham do governo Dilma Rousseff. Nota-se que a relação estabelecida entre as agências de ambos os países ultrapassa os termos previstos pelos acordos internacionais. Como parte dessa informalidade, o acesso a informações sobre a atuação de agências policiais norte-americanas no Brasil é muito restrito, como atesta a reportagem. Essa espécie de ingerência externa atravessa mecanismos de controle governamentais e, portanto, tensiona a própria soberania do Estado, ao mesmo tempo em que é estimulada e promovida pelas próprias agências estatais, como a Polícia Federal.

O caso em questão traz à tona uma série de questões fundamentais para a sociedade ao nos revelar que o exercício do policiamento se expande para além das delimitações territoriais e nacionais. A definição de agendas, objetivos e estratégias no campo da segurança e da justiça, o desenho das leis, as condutas e tecnologias policiais e a condução de investigações são aspectos definidos transnacionalmente sem que haja um debate transparente na sociedade ou até no próprio governo, como demonstra a reportagem. Esse policiamento em nível transnacional tem viabilizado a criminalização de novas práticas, a homogeneização de leis e de condutas policiais e, ainda por cima, pode ser instrumentalizado por governos estrangeiros para que seus objetivos de política internacional sejam atingidos. “Nós vimos presidentes derrubados no Brasil. Esses são os resultados de casos como esses”, assume Leslie R. Backschies.  

Em certos casos, é evidente que os governos se utilizaram de seus aparatos burocráticos policiais para atingirem seus objetivos de política doméstica e internacional, como parece ser o caso da recente participação de agências norte-americanas no Brasil. Em outros casos, contudo, as próprias agências policiais adquirem capacidade de pressionar e influenciar as decisões políticas de um dado governo, como foi o caso do impacto que as operações da Polícia Federal geraram sobre o governo Dilma Rousseff,  que levou à sua queda. Esse jogo de pressões apresenta-se de forma ainda mais destacada no governo Bolsonaro, que ascendeu ao poder capitalizando exatamente a adesão de Sergio Moro. Os episódios em torno da queda do ex-ministro de justiça demonstram como as polícias podem ser um espaço de disputas e influências políticas, uma vez que a corporação responsável por investigações que podem ruir o poder de Bolsonaro e de sua família é a mesma na qual o presidente aparentava ter construído conexões que atuavam em seu favor.

Priscila Villela é mestre e doutora em Relações Internacionais pelo PPGRI San Tiago Dantas (UNESP, UNICAMP, PUC-SP), professora de Relações Internacionais da PUC-SP e pesquisadora do Núcleo de Estudos Transnacionais da Segurança (NETS) e do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (GECI). 

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