PUC-SP sedia encontro de reitores de universidades comunitárias promovido pela ABRUC
A reitora Maria Amalia Andery recebeu o prêmio Mérito Educação Comunitária pela sua...
Texto escrito pela profa. Mônica de Melo, Pró-Reitora de Cultura e Relações Comunitárias (ProCRC); assista também ao vídeo no final do artigo
Texto de profa. Mônica de Melo
- Pró-Reitora de Cultura e Relações Comunitárias da PUC-SP
- Coalizão Nacional de Mulheres
- Fórum Justiça
- Vice-Presidenta da Associação Brasileira de Mulheres de Carreira Júridica – SP
- Grupo de Pesquisa Direito, Discriminação de Gênero e Igualdade da PUC-SP
- Coletiva Nacional e Estadual de Mulheres Defensoras Públicas
Em Ursula, romance de Maria Firmina dos Reis, de 1859, mãe Susana, a preta Susana, rememora ao personagem Túlio, também um negro, como se iniciou seu cativeiro. Era uma mulher livre onde nasceu, tinha uma filha querida, marido a quem amava como a luz de seus olhos e os bárbaros fizeram com que deixasse tudo para trás: pátria, esposo, mãe, filha e até a própria liberdade. Foi amarrada com cordas, seria escravizada. Suplicou que a deixassem, que tinha filha, mas os bárbaros sorriam-se diante de suas lágrimas e a olhavam sem compaixão. Viajou, por 30 dias, acorrentada de pé com mais 300 pessoas igualmente acorrentadas, como animais ferozes, no estreito e infecto porão de um navio até chegar às praias brasileiras, onde outros tormentos a aguardavam. Muitos morreram por falta de ar, alimento e de água. Maria Firmina dos Reis, mulher negra, que abriu a primeira escola mista para que meninas tivessem acesso à educação, em 1880 em Guimarães, no Maranhão, não assinou sua primeira publicação, na qual constou apenas “uma maranhense”. Seu livro é considerado o primeiro romance abolicionista brasileiro escrito por uma mulher negra. Ficou esquecido por mais de um século, mas nos coloca diante de questões que merecem ser lembradas e refletidas no século XXI, especialmente no dia 25 de julho, Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha e Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra.
O Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha foi criado a partir do 1º Encontro de Mulheres Negras da América Latina e do Caribe de 1992, em Santo Domingo, na República Dominicana e o Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra foi criado em 2014 pela lei brasileira de número 12.987 de 02 de junho. O encontro ocorrido em Santo Domingo em 1992 aconteceu a partir de reflexões e ativismos de mulheres negras que não encontravam lugar no feminismo hegemônico branco eurocentrado. Ali, mais de 350 mulheres negras de 32 países criaram a Rede de Mulheres Afro-latino-americanas, Afro-caribenhas e da Diáspora (RMAAD), como relembra Bianca Santana na biografia Continuo Preta: a vida de Sueli Carneiro. Sueli Carneiro, em sua trajetória de intelectual e ativista, tem defendido a necessidade de enegrecer o feminismo a fim de que as lutas por igualdade de direitos incorporem as experiências e as vivências das mulheres negras, garantindo que não sejam invisibilizadas, silenciadas e desumanizadas.
Ao discutir a situação das mulheres negras latinas e caribenhas, Lélia Gonzalez, uma das precursoras do feminismo negro interseccional, diria que há uma dupla dominação (de gênero e de raça) no sistema patriarcal-racista. Afirma no artigo “Por um feminismo afro-latino-americano” que um feminismo latino-americano perde muito de sua força a não considerar o caráter multirracial e pluricultural das sociedades da região: trata-se de uma discriminação em dobro para com as mulheres não brancas da região: as amefricanas e as ameríndias. O duplo caráter da sua condição biológica – racial e sexual – faz com que elas sejam as mulheres mais oprimidas e exploradas de uma região do capitalismo patriarcal-racista dependente. Justamente porque esse sistema transforma as diferenças em desigualdades, a discriminação que elas sofrem assume um caráter triplo: dada sua posição de classe, ameríndias e amefricanas fazem parte, na sua grande maioria, do proletariado afro-latino-americano. Lélia Gonzalez cria essa categoria da “amefricanidade” e explica que um dito popular sintetiza essa situação: “branca para casar, mulata para fornicar, negra para trabalhar”. Ou seja, abolida a humanidade das amefricanas, elas são vistas como corpos animalizados.
Reivindicar o que une mulheres negras, latinas e caribenhas é repensar nossas identidades geopoliticamente de uma perspectiva própria, decolonizada e não a partir da classificação do colonizador e de suas formas de produção de conhecimento e relações de poder. Ochy Curiel, antropóloga afro-dominicana, chama de “antropologia da dominação” a proposta de desvelar formas, maneiras, estratégias, discursos que vão definindo a certos grupos sociais como “outros” e “outras” dos seus lugares de poder e de dominação. O colonialismo estabeleceu uma relação de dominação política, social e cultural dos europeus sobre todos os conquistados. A colonialidade prossegue na colonização de nosso pensamento e imaginário, na manutenção de um sistema que criou o negro como o não-humano. Como pontua Franzt Fanon no livro Pele negra: máscaras brancas: a inferiorização é o correlato nativo da superiorização europeia. Tenhamos a coragem de dizer: é o racista que cria o inferiorizado. Maria Firmina dos Reis, dá voz à mulher negra escravizada, expondo o sistema de mando patriarcal e escravista, o sexismo e o racismo, recolocando o branco europeu como o bárbaro, que ao desumanizar também se desumaniza
Um feminismo antirracista e decolonial deve se apoiar na longa luta das antepassadas, nos saberes ancestrais e atuais das mulheres negras, indígenas e nas mulheres racializadas que vivem os efeitos perversos da escravização até os dias de hoje. O documento Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil, publicado pelo IBGE em 2019, construído a partir de diferentes indicadores sociais essenciais à reprodução das condições de vida, como mercado de trabalho, distribuição de rendimento, condições de moradia, educação, violência e representação política evidencia uma desigualdade social brutal no que se refere às mulheres negras em todos os campos. Apenas para ficar no mercado de trabalho, em 2018, as pessoas de cor ou raça preta ou parda receberam apenas 57,5% dos rendimentos daquelas de cor ou raça branca. O diferencial por cor ou raça é explicado por fatores como segregação ocupacional, menores oportunidades educacionais e recebimento de remunerações inferiores em ocupações semelhantes. As mulheres pretas ou pardas recebem menos da metade do que os homens brancos auferem (44,4%). O segundo grupo de maior vantagem é o da mulher branca, que possui rendimentos superiores não só aos das mulheres pretas ou pardas, como também aos dos homens dessa cor ou raça (razões de 58,6% e 74,1%, respectivamente). Os homens pretos ou pardos, por sua vez, possuem rendimentos superiores somente aos das mulheres dessa mesma cor ou raça (razão de 79,1%, a maior entre as combinações).
O 25 de julho convoca ao antirracismo, ao aquilombamento e à resistência como fez Tereza de Benguela no quilombo do Quariterê. Ouçamos a poeta e cordelista Jarid Arraes que em seu livro Heroínas negras brasileiras em 15 cordéis, nos diz: “Um exemplo muito grande é Tereza de Benguela. A rainha de um quilombo. Que mantinha uma querela. Contra o branco opressor. Sem aceite de tutela. Oh, Tereza de Benguela! Nosso espelho ancestral. Sua alma ainda vive. E entre nós é maioral. Nós honramos sua luta. Sua força atemporal!”