Mas nem um xaropinho pra tosse?

por Redação | 10/08/2022

Profa. Dra. Maria Carolina Pereira da Rocha
Médica, infectologista pediátrica; mestre em farmacologia pela Uniso; doutora em Ciências
Sociais pela PUC-SP e docente do Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências
Médicas e da Saúde da PUC-SP. 

 

Ana tem 30 anos e levou sua filha, Júlia, de três anos, à médica, porque ela estava com nariz escorrendo, febre e tosse. A médica disse que era resfriado e os sintomas deveriam melhorar em uma ou duas semanas. Até lá, Júlia deveria descansar, tomar muita água e lavar o nariz com soro fisiológico. “Mas nem um xaropinho para a tosse, doutora?”, perguntou Ana, aflita, uma vez que desejava ver sua filha melhorar logo.

O outono e o inverno são épocas de circulação de muitos vírus respiratórios, que deixam as crianças muito doentes. Tosse, narizinho escorrendo, febre baixa e um pouco de desânimo são sintomas pouco graves ao olhar médico, mas que causam preocupação, irritabilidade, alteram o sono e mudam toda a rotina de uma família.

Se a criança for pequena e frequentar a escola, fica ainda mais complicado: parece que elas passam o tempo todo gripadas. A nossa tendência, como pais, é sair correndo atrás de um remédio milagroso, que melhore logo tudo isso. Porém, feliz ou infelizmente, tal poção mágica não existe. Essas infecções, na grande maioria das vezes, são causadas por vírus, são benignas e melhoram sem intervenções.

Apesar disso, é quase irresistível procurar algo que faça, finalmente, nosso bebê melhorar. Xaropes, remédios para a tosse, remédios para o nariz, antibióticos e antialérgicos não costumam ser eficientes. Temos que lembrar que todas as intervenções podem ter efeitos adversos.

Os resfriados, as infecções virais e as febres fazem parte do crescimento das crianças e são absolutamente esperados nessa fase. Existem dados científicos que mostram que as crianças podem ter em torno de nove infecções virais por ano – e isso é normal. A febre também é importante para o desenvolvimento das defesas do organismo e só deve ser medicada em situações muito específicas.

Quando vemos nossos filhos doentinhos, é muito difícil resistir ao bombardeio de propagandas de remédios para tosse, secreção e febre; antibióticos e vitaminas. Deparamo-nos com uma farmácia em cada esquina, insistindo em nos lembrar que, provavelmente, precisamos de algum produto vendido por elas.

Há uma indústria que nos faz acreditar que precisamos usar medicamentos, influenciando os “pacientes” e, também, os médicos. Precisamos falar mais sobre isso.

Também há outro aspecto, especialmente em serviços de urgência e emergência, em que existem tantas pressões que a prescrição de medicamentos e a solicitação de exames acaba sendo a forma que os profissionais dispõem para resolver o problema. Há estudos que mostram que, quanto piores as condições de trabalho, maiores as chances de prescrição de medicamentos desnecessários.

Claro que há situações mais graves, as quais merecem atenção e a necessidade de algum medicamento ou intervenção. Por isso, temos sempre que individualizar cada resfriado, cada criança e cada família.

Mas, em geral, crianças resfriadas precisam de muita água, descanso, carinho, acolhimento e cuidado de uma pessoa com quem elas tenham vínculo e se sintam seguras. Não se trata de minimizar o que a criança sente, mas, sim, de tratar os impactos desses episódios na vida e na rotina dela e da família; tratá-los de forma mais integral, sustentável e com a complexidade que merecem, sem reduzi-los a intervenções ineficientes.

Devemos, também, considerar todo o contexto em que esses episódios de infecções ocorrem. A questão é complexa e envolve a sociedade, a indústria farmacêutica, o marketing em cima de medicamentos e uma cultura de prescrições desnecessárias, além de abranger a urgência de algumas famílias para resolver o problema, por não terem apoio da sociedade para cuidar de uma criança doente.

Há famílias que estão inseridas em um mercado de trabalho que exige cada vez mais e leis trabalhistas frágeis, que não veem com bons olhos quando pais e mães precisam se afastar por causa dos filhos doentes. Existem avós que têm sua aposentadoria cada vez mais tardia e precária, com poucas condições para serem a rede de apoio. Isso tudo é associado a uma sociedade que não tem tempo a perder.

Nossa sociedade não se sente responsável pelas crianças e tende a isolá-las. Entende que elas incomodam, dão trabalho, são barulhentas e suas presenças são consideradas inapropriadas. As famílias que optam por terem filhos são levadas a crer que isso foi uma escolha e, portanto, devem dar conta dela sozinhas.

As crianças e as doenças têm seu próprio tempo. Nós, médicos, chamamos isso de história natural da doença: o tempo que nosso organismo leva, em média, para lidar com esses vírus e se recuperar naturalmente. Estamos o tempo todo apressados e esse não é o ritmo da natureza, das crianças e nem das doenças.

O melhor cuidado em saúde é o que considera toda essa complexidade. Júlia não precisa de xarope para a tosse ou de antibiótico. Ela precisa de ar puro, contato com a natureza, brincar ao ar livre, acesso a um serviço de saúde de qualidade. Não precisa de suplementação vitamínica, mas, sim, de uma alimentação saudável, natural, sem agrotóxicos, e que Ana tenha tempo e condições de cozinhar com ela. Júlia e Ana não precisam de pressa para a melhora do resfriado, mas de uma sociedade solidária, que as acolha na sua individualidade, respeitando a velocidade e os processos naturais da vida.

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