PUC-SP na Mídia: artigo "Infonegócios endofascistas"

Participação do prof. Eugênio Trivinho (Comunicação e Semiótica)

por Redação | 21/12/2023

A regulamentação das redes de Big Techs, que pressupõe regulação contínua, uma vez juridicamente assentada, também é politicamente legítima, como demanda pública e democrática.

A transição enquadrada

A suposta desmassificação no âmbito da comunicação eletrônica – processo erroneamente associado a diversas formas de apropriação e uso sociais de tecnologias digitais e interativas, a partir do final dos anos 1960 – semeou, ao menos, um horizonte irreversível: as plataformas digitais (de relacionamento e participação, educação e informação, busca e consulta, entretenimento e trocas comerciais) representaram, de fato, o tiro de misericórdia no monopólio da informação controlado por meios analógicos de comunicação de massa.

Na esteira da informatização generalizada, da miniaturização de tecnologias digitais e da cultura de sites, chats e blogs, essas plataformas levaram às últimas consequências a transferência, para mãos comuns, não apenas do assenhoramento direto de todo e qualquer conteúdo circulante, como também da possibilidade de reação imediata a ele e de criação a partir dele, além de distribuí-lo e/ou irradiá-lo em cadeia ramificada, com apoio em perfis autocustomizados.

À propalada “acefalia” das massas consumidoras de media convencionais – massas telespectadoras, radiouvintes, leitoras etc. – seguiram-se bilhões de cabeças interativas, pivôs de complexa teia de interconexões locais, regionais, nacionais e internacionais (alcance geográfico conforme a potência e o alcance do equipamento e da rede em jogo, bem como a capacidade dromoapta – ligada à rapidez – do usuário). A natureza e a função social-históricas dessa dinâmica cibercultural, com consequências políticas imprevisíveis, estão longe de ter sido profunda e definitivamente compreendidas.

Para lembrar Jean Baudrillard, remanescem tão incógnitas quanto a natureza, função e consequências das massas vinculadas aos sistemas televisivo, radiofônico e impresso. Eis o pomo principal: a tão necessária conquista política e cultural da libertação dos signos (notícias, imagens, informações etc.) do cativeiro industrial-monopolista de massa e a transição comercial deles para o universo pós-industrial e algoritmizado de cabeças e mãos comuns culminaram numa exuberante produção simbólica coletiva tecnocraticamente enquadrada pela ideologia transnacional e hegemônica de modelos de negócios bilionários, propostos e gerenciados no ciberespaço pelas chamadas Big Techs (a maioria sediada ainda no Vale do Silício, na costa oeste dos Estados Unidos.

Além de catalisar a percepção e disputar a atenção dos indivíduos como forma de capitalização monopolista do desejo de pertencimento, participação e partilha, a ideologia tecnocrática das Big Techs fomenta – e se alimenta de – pulsões reativas (não raro, compulsivas e infrarracionais, embora não inconscientes), em condições neoliberais (isto é, desregulamentadas e supostamente gratuitas, à sombra do Estado, sob a fantasia onipotente do individualismo produtivista e sob a crença utópico-irresponsável na exclusividade do mercado como vórtice de geração de bem-estar).

Esse incentivo retroalimentante de reações imediatistas aposta na autorregulação interativa pelo próprio social, como se as pulsões psicoemocionais – de todas as partes e de parte alguma – pudessem operar uma (e se concatenar numa) racionalidade desprovida de problemas, malgrado no fluxo de um mercado acéfalo igualmente à mercê dos humores oscilatórios das paisagens noticiosas, hoje provenientes das e replicadas nas chamadas “redes sociais”.

Em tais condições – as mesmas em que instituições educacionais comparecem secularmente impotentes para administrar (que dirá controlar) pulsões humanas comezinhas (como as de racismo, misoginia, lgbtfobia, xenofobia etc., inclinações psicoemocionais patriarcais em matéria de construção da imagem alheia e de interações interpessoais) –, o universo usuário funciona eficientemente como vórtice de ressonância de experiências mal resolvidas (traumas de interação insistentes, rancores intergrupais inapagáveis, frustrações inesperadas e sem luto etc.) e de projeção incontinente de práticas preconceituosas e estigmatizante – demônios do ego e do inconsciente, intemperáveis e, em geral, sublimados em contextos conflitivos.

Evidências de época traduzem, às escâncaras, que essa autorregulação social – no caso, por formas coletivamente aleatórias de apropriação e uso de tecnologias digitais e redes interativas – tem pressionado a sociedade a pender política e perigosamente para a extrema direita, ao beneficiar todo tipo de intencionalidade ressentida e vingativa, expressa em modos incivis de tratamento do outro. Na pródiga esteira da produção audiovisual mediana de massa (desde, pelo menos, os anos 1930), essa autorregulação tem, desafortunadamente – é preciso lembrá-lo –, colaborado também para o aprofundamento de idiotias socioculturais e imbecilidades anticientíficas. As fake news são disso uma síntese dejà-vu majestosa, com graves reverberações políticas e sociais.

O mencionado pendor (para a extrema direita) é inseparável de insatisfações ultraconservadoras com os modelos vigentes de sistema capitalista, esculpidos sob pressões históricas (nos últimos dois séculos), em ruas e praças, por milhões de trabalhadores e desempregados – sem-terra, sem-teto, muitas vezes sem-pátria – em prol de direitos civis, sociais e previdenciários. Essa longa e sangrenta jornada internacional de massa culminou em sistemas socioeconômicos significativamente regulados pelo Estado; em série de contenções ou restrições legais à sanha expansionista do capital, especialmente do graúdo (aqui priorizado); em esquemas (bastante falhos) de tributação progressiva para aplainar desigualdades materiais; em quinhão maior de participação das classes populares e desfavorecidas em processos democráticos de decisão sobre rumos civilizatórios; e na liberalização diversificada de hábitos e costumes (de que não se divorciam induções comerciais do próprio capital), entre outras tendências de minimização de risco e dano conquistadas a duras penas.

No Brasil, esse cenário de hegemonia do Estado sob Carta Magna socialdemocrata é severamente malquisto por todas as vertentes ultraconservadoras, desagradando setores tecnologicamente avançados e, ao mesmo tempo, politicamente reacionários do capital e seus representantes (exceto quando há subsídios estatais…) – do campo à cidade (ou, se se quiser, do agronegócio à indústria de armamentos e às start-ups neoliberais bilionárias, cooptadoras parasitárias da rede).

Inexiste frustração que não encontre espelho no passado. Por natureza histórica e propensão épica, o capital – seja de qual ramo for – sempre pulsou liberdade incondicional em direção exploratória multilateral. Vergados ou não a responsabilidades legais, seus proprietários e representantes, cumprindo-as ou contornando-as, consideram insuportáveis quaisquer amarras estatais e morais à realização e reprodução ampliada do valor de troca, exceto leis que equalizem trocas econômico-financeiras em níveis concorrenciais esperados. Tal fleuma padrão se aprofundou após a Segunda Guerra Mundial.

Em termos macroeconômicos recentes, o neoliberalismo – e isto contextualiza a voracidade do prefixo “neo” – significa, não por acaso, certa “rebeldia” política, tão calculada quanto organizada, dentro do ordenamento jurídico, para tentar implodir dispositivos legais – um a um – que limitam a sanha vocacionada do capital, este farejo de oportunidades de lucro rápido no menor tempo possível, sejam quais forem as consequências socioculturais, políticas e éticas. O meio ambiente, na ferida aberta de um aquecimento planetário dificilmente reversível, é um sintoma grosseiro dessa insanidade com foros de razão. A comida à mesa, com fertilizantes e pesticidas cientificamente controversos, também.

A expectativa de um capital cordato constitui fantasia humanista perigosa: mãos em entrelaço, ela reza ante matilhas diferentes. Rara é a iniciativa graúda de capital aplacado na doutrina dos direitos humanos e sociais. Recuos estratégicos em quaisquer de seus ramos são observados exclusivamente sob pressão intensa e contínua de forças políticas e sociais contrárias, com suporte do Estado ou não.

Infonegócios endofascistas

A observação política mais aguda do tópico anterior merece ênfase reangulada: tendências factuais há muito replicam, por toda parte, o quanto alguns segmentos das Big Techs condicionam espaço livre e sinal verde para visões e sentimentos de mundo que intoxicam, com veemência organizada, interações civis, minando, algo mais, a necessária abertura a modos diversos de vida. Em particular, a estrutura dinâmica das plataformas digitais de relacionamento, participação e partilha – as que, junto com sistemas de interação via smartphones e tablets (por applications), possibilitam a formação de redes sociais (como YouTube, Facebook, X, Instagram, WhatsApp, Telegram etc.) – serve a fundamentalismos incontinentes, na forma seja de extremismos políticos, seja de moralismos radicais (religiosos ou não), quase sempre de mãos entrelaçadas.

O desdobramento é claro: a expansão das Big Techs, por sua ascendência infotecnológica sobre todas as instâncias sociais, corre de par com a proliferação de grupos nazifascistas, supremacistas e quejandos. Pelas mesmas razões, os cybernet businesses estão, direta ou indiretamente, implicados na ultradireitização das pressões sobre sistemas e valores democráticos. Sem projeto estatuído em favor dessas pressões, as Big Techs, no entanto, colaboram para a desgraça de penosas conquistas históricas.

O argumento de que há coincidência acidental nesse vultuoso pormenor é leviano e, na má-fé, desinformado. Em matéria de construção societária, os modelos de negócio dessas megacompanhias incentivam, de fato, regressões históricas, políticas e institucionais.

A mencionada relação simetricamente proporcional – entre expansão de condicionamentos corporativo-digitais e proliferação de narrativas e práticas autoritárias de direita – obedece a regras socioeconômicas relativamente estáveis no capitalismo. As plataformas digitais de relacionamento, participação e partilha são livremente apropriadas (isto é, incorporadas ao campo próprio, à realidade individual) por categorias sociais econômica e cognitivamente preparadas para fazê-lo (por precários que sejam o equipamento e o pacote de acesso à rede), sobretudo em períodos ou contextos de disputa política, religiosa e/ou moral.

No aleatório jogo dessas apropriações e usos, grupos, partidos e extenso séquito de extrema direita têm, há anos, levado amplamente a melhor, com domínio mais avançado de fatores do submundo online (a chamada dark ou deep Web) do que agremiações e vertentes de esquerda, nos campos político e cultural.

Em se tratando de empreendimentos na múltipla área da tecnologia interativa (inteligência artificial à frente) como vetor de desenvolvimento civilizatório, o “conjunto da obra” reportado acima, visto por prisma diverso, patenteia o que não surpreende do ponto de vista histórico: há cartadas de inovação que equivalem a (e/ou são egressos de) infonegócios endofascistas.

Arquiteturas corporativas no segmento da informação em tempo real, esses cyberbusinesses não são, originalmente, modelos comerciais fascistas de enredamento tecnológico sofisticado. Uma vez abertos a todas as formas de apropriação e uso, acabam, na capitalização intensiva da participação e expressão individuais, escancarando-se, entretanto, em seus espaços sociotecnológicos internos, a todos os tipos de narrativa e tendência de extrema direita, com nefastas consequências imprevistas.

Começam como experimentalismos regionais ou nacionais de empreendedorismo neoliberal em rede e, em virtude da adesão transfronteira de bilhões de pessoas, convertem-se, não raro em tempo recorde, em megaempresas ultralucrativas, com ramificações globais. É o caso da extração de lucro da mina das relações interpessoais (e, em essência, do desejo de ser e aparecer, pertencer e compartilhar) através de máquinas e redes digitais (desktop e mobile).

A alegação de que o reescalonamento indiscriminado de vertentes extremistas não é, fundamentalmente, problema das plataformas digitais, mas da natureza e qualidade epocais da sociedade civil – esta resultante lenta do jogo das instituições e das propensões político-morais da população historicamente constituídas –, não arruína somente uma franja política relevante (em geral, esquecida) da noção de responsabilidade social (falsamente cativa da exclusividade do campo ambiental): sedento de lucro a qualquer custo, o argumento, também leviano, lava as mãos para a necessidade de preocupação permanente com a construção da sociedade à luz constitucional do bem-estar coletivo e efetivo. Empreendimentos corporativos de fortes consequências sociopolíticas e morais inserem-se, tanto mais eles, no quadro desse cinismo aquoso.

Houvesse interesse genuíno e contínuo das Big Techs na contramão dessa indiferença patente, valeria, ainda assim, não olvidar que o social encerra caprichos inapeláveis: construção histórica complexa demais para esquematismos de prancheta, ele jamais será um organismo darwinista algorítmico-estatístico propenso ao sucesso de dromoaptos girando em torno de maquinetas e plataformas digitais 24 horas por dia. (Do ponto de vista individual, a dromoaptidão diz respeito à introjeção e incorporação da velocidade como valor sistêmico de época.) O social não se verga – nem se vergará, lembre-se – a simplificações interpretativas de mentalidade corporativa alguma.

O caso das Big Techs não escapa à regra: quanto mais robusto o intento de sobredeterminação do social, mais falho o resultado. Tais simplificações, que muito franzem até a testa da ética piedosa, não cansam de beirar programaticamente o perigo: o social não se reduz – nem jamais o fará – a mera somatória de redes comunicacionais controladas pelo capital privado e, no “serviço prestado”, publicitariamente aparentadas como “espaço público” de interações (com entes humanos e artificiais).

O social não se reduz a espécie de argila moldável por modelos de negócio do segmento interativo, virtual e/ou algorítmico, tanto mais quando ensejam, sob suas barbas e/ou às suas expensas, a definição (política, sempre) de quem domina ou não seus espaços corporativamente condicionados e, na sombra eleitoral desse processo, quem tem direito a engolfar a totalidade social. Mesmo sob incertezas, o princípio da reciclagem estrutural de tudo e de todos costuma ser implacável: o que funciona em certo momento histórico-político – por despreparo sociotecnológico das forças de oposição – custa a repetir sucesso idêntico na sequência.

A impossibilidade de qualquer sofisticado business engineering que deprecie a potência múltipla do social ao tentar enquadrá-lo em suas injunções corporativas vê-se onerada pela evidência de que a autorregulação total pelo mercado das apropriações e usos ameaça dinâmicas republicanas e democráticas vigentes. Em certa medida, o arco completo desse arruinamento político passa pela ocupação de poderes do Estado, em vespeiro sinistro hoje estimulado pela existência das redes sociais. Vale, para efeito esclarecedor, invocar o mantra progressista há anos convertido em senso comum (aliás, de matadouro): o fundamentalismo neoliberal da extrema direita necessita do jogo democrático para se apoderar do aparelho estatal, corroer conquistas trabalhistas e previdenciárias (cavadas no rastro de sangue desde, pelo menos, o início do século XIX) e implantar dinâmicas ditatoriais e/ou autocráticas apoiadas em todo tipo de desregulamentação, às custas até (do recrudescimento) de condições de trabalho escravo.

O argumento de que as redes digitais corporativas são abertas a quaisquer visões e sentimentos de mundo – mais precisamente, todas elas são bem-vindas, mesmo as genocidas – assume, nesse contexto, ares de falácia, além de arremedo populista: o intento de provisão de espaços públicos paritários ou equitativos de comunicação não equivale a dádiva compensatória por seja qual for a iniciativa de negócios; a mera diversidade quantitativa não galvaniza equilíbrio de forças sociais garantidoras do ideário da democracia.

Falácias jamais conseguem camuflar inteiramente sua astúcia: visões opostas à extrema direita, hoje majoritariamente confluentes para o status quo, não ameaçam, nem por dentro, nem por fora, essa modalidade plural de governo. Fosse minimamente válido, o discurso da equalização de condições abertas à miríade de apropriações e usos de redes digitais, no entanto, seria, como proposta comercial, primário: converte democracia em democratismo. Toda corruptela política é, senão ingênua, desprimorosa – jamais estulta: vai, no caso, à ampla praça para gerar lucro (material ou simbólico, imediato ou diferido).

A banalidade dessa casca rugosa – corruptela convence apenas desavisados – cedo entrega o iceberg inteiro. O perfil das Big Techs encontra, na verdade, fundamento (não exclusivo) na financial ideology (em suma, ideologia do dinheiro), pretensamente neutra em sua crua propensão objetiva. Fake news e negacionismos hilários de grupos e agremiações extremistas rendem dinheirama a rodo às plataformas. Sob a ótica desses negócios, a discórdia política aguda, sobretudo a de rabo de celeuma (com trends e ciclo demorado), é transformada em pilar de capitalização virulenta.

Ainda a contrapelo da mencionada falácia populista, se a democracia louva a matemática (sendo dela, modernamente, um dos resultados, por quórum majoritário), nem por isso se equipara a condições linearmente quantitativas. A gravidade do motivo reivindica a experiência histórica: a democracia não pode acalantar forças políticas que desejam destruí-la. Ela pode ter vários senões (e conviver com todas as críticas, das legítimas às acerbas), menos o de flertar com a ignorância ou com a inépcia. Se ela superexpõe a própria espinha dorsal, encerra, contra si – a contragosto estranhamente masoquista –, saudosismo de regimes totalitários: cumpre o jogo do inimigo, levando-lhe pudim à bocarra.

Keynesianismo cibercultural

O feixe de fatores acima, que sinaliza certa exacerbação neoliberal dos negócios algorítmicos, concorre para fazer com que, hoje, as Big Techs tenham de engolir a única solução política possível para eles – solução amplamente emergente, defendida em diversos segmentos especializados e em instâncias de Estado, no Brasil e no exterior: a regulamentação democrática das plataformas digitais* – algo que a esperança de justiça, na diplomacia requerida, não erra se clausula como keynesianismo cibercultural.

Na década de 1930, John Meynard Keynes constatou ciclos de incerteza e desequilíbrio no desenvolvimento auto-organizado do capitalismo industrial – ciclos críticos insolúveis sem intervenção do Estado como agente macropolítico de dinamização da economia.

Essa intervenção pressupunha, de modo concatenado, quatro políticas essenciais: a tributária, a financeira, a de endividamento e a de investimento. A arrecadação de impostos (compatível com as necessidades de sustentação do Estado), a regulação da taxa de juros (situada abaixo da taxa de lucro do capital, para desestimular sua retenção no sistema financeiro improdutivo), a captação de crédito (em forma de endividamento seguro) e o fortalecimento do gasto estatal produtivo (gerador de emprego e, com ele, de ciclo consequente de renda próspera e demanda efetiva) – essas principais metas do diagrama keynesiano – confluíam para afastar o fantasma da estagnação econômica do capitalismo.

Na contramão dessa corrosão estrutural, a maior dilatação da oferta de postos formais de trabalho (por parte seja do Estado, seja do capital privado) e, simultaneamente, a preservação da mais ampla empregabilidade encerravam sintomas de maximização da atividade produtiva. Atualmente, é fora de dúvida que tais medidas – polêmicas à época, no seio do liberalismo – concederam fôlego à reprodução do modelo capitalista de sociedade, abalado pela grave crise de 1929, com efeitos depressivos durante a terceira década do século XX.

A racionalidade dessa salvaguarda permitiu refrear “disfunções” socioestruturais típicas do livre mercado, que poderiam, como contradições, levar o capitalismo a novo colapso – contradições, por exemplo, como a convivência (de toda forma, jamais abolida) entre, por um lado, regularidade de altas taxas de lucro industrial e comercial, conjugada à máxima concentração de afluência em parcela ínfima da população, e, por outro lado, desemprego sistêmico contínuo, com alargamento descontrolado das margens de pobreza e miséria. A intercessão estatal proposta por Keynes respondia à tentativa – ilusória, por certo – de condicionar, a médio e longo prazos, divisão mais equitativa da riqueza, a fim de minorar danos e riscos sociais, estabilizar o pleno emprego e proporcionar bem-estar nacional.

Ao que tudo indica, a necessidade de regulamentação democrática das Big Techs tem exigido que o húmus técnico dessa concepção macroeconômica seja, mutatis mutandis e em linhas gerais, debulhada de ilusões intrínsecas e transferida para o contexto interativo da cibercultura, em razão, única e exclusivamente, das reverberações sociais (das apropriações e usos) das plataformas digitais – obviamente, lá e cá, por fatores distintos (e que os dois primeiros tópicos do presente texto demonstraram per se).

A regressão histórico-política operada por apropriações e usos extremistas dessas plataformas, sob Big Techs desregulamentadas, foi tanta que a preocupação legítima e intensa com a seguridade socioinstitucional da democracia passou a combinar com a recorrência a procedimentos técnico-reformistas similares aos do passado capitalista recente – uma concertação que, por sua vez, autovalida (o desenterro de) expressões pregressas e compatíveis, como “keynesianismo”, para dar minimamente cabo à escabrosidade – minimamente: isto é, sem garantias. Volteios regulares da história surpreendem apenas, mais que os desavisados, a puerilidade evolucionista, religiosa ou não.

No intervalo entre as duas principais guerras tecnológicas do século XX, o keynesianismo, como política regulatória de Estado, foi essencialmente econômico-financeiro. Na cibercultura como época histórica – a fase tecnológica mais avançada do capitalismo herdado do final do século XVIII, assentada em processos digitais e interativos (da robótica de rede ao algoritmo e à inteligência artificial, e além) –, o equivalente keynesiano assume expressão político-informacional, com repercussões econômico-financeiras e culturais.

Assim como a reprodução ampliada do capitalismo industrial engendrou a técnica macrorreformista do keynesianismo, de choque antiliberal para conter crises sistêmico-recessivas, equalizar minimamente efeitos estruturais perniciosos do mercado e rechaçar a ameaça entrópica, a democracia formal (como construção de Estado de Direito) sob o capitalismo algorítmico tem exigido, como técnica de prudência política, um reformismo glocal de tipo keynesiano, de choque antineoliberal no âmbito da informação e da cultura, para aplacar a voracidade amoral das Big Techs, desidratar o sinistro extremista e isolar a ameaça autoritária.

Essa injunção significa que, em sociedades marcadas por apropriações e usos aleatórios tendentes a hegemonizar eleitoralmente a extrema direita, urge a regulamentação democrática das redes sociais por iniciativa da sociedade civil progressista e com apoio participativo do Estado – ambos decisivos. O Brasil é desses casos – e, ao que parece, assim será por muito tempo.

Por ângulo inverso – e com todas as letras, para reiteração enfática de posicionamento idêntico –, o cerne ideológico do keynesianismo cibercultural pressupõe que Ministérios e Secretarias de Estado, em conjunto com segmentos democráticos da sociedade civil, devam encabeçar o processo de regulamentação das plataformas digitais para reduzir danos e riscos de uma autorregulação coletivamente aleatória (à mercê de apelações políticas e morais periclitantes, de mercado e audiência), em tempos de infestação de redes por grupos nazifascistas, supremacistas e similares, com habitual destilação odienta.

Em particular, o Estado – instituição financiada pela sociedade, subordinada à Carta Magna e, portanto, instaurada (ao menos, em expectativa) na forma de Estado de Direito guardião da democracia (esta, um patrimônio coletivo in progress, a receber defesa inveterada como conquista irreversível) – jamais pode, nesse horizonte, ficar à parte de incumbências articulatórias: ele é viga crucial de resolução completa do problema.

Uma flexão fundamental do processo foi lembrada (e propositada) por Sergio Amadeu da Silveira: a complexidade da construção social de um marco legal dessa natureza “passa pela definição de uma comissão multissetorial que possa auditar, ajustar e acompanhar permanentemente a implementação e aplicação do regulamento”. Além disso – e antes de tudo –, esse marco legal precisa, evidentemente, derivar de ampla discussão pública, à luz de princípios e critérios previamente pactuados e procedimentos transparentes, acima de quaisquer dúvidas, incluindo “explicação, responsabilização da operação e gerenciamento dos conteúdos, dos dados e dos sistemas algorítmicos das plataformas. Acrescente-se que essa instância socioinstitucional, de caráter estável, autônomo e indissolúvel, implementada pelo Estado, deve ser impermeável a ingerências de qualquer natureza e impassível a ciclos governamentais.

Em termos pragmáticos e sucintos, a necessidade jurídica manda consolidar a versão final do Projeto de Lei (seja a em curso desde 2020, seja outra) e fazê-la vencer o trâmite no Congresso Nacional, com aprovação plenária. Na sequência, a matéria deve transitar pela Presidência da República, para sanção ou veto. Havendo veto parcial, o respectivo conteúdo retorna ao Congresso.

A rigor, inexistem motivos para alardes de despreparo, simulações de espanto e temores sem fundamento. Do ponto de vista macroestrutural e socioinstitucional, o keynesianismo cibercultural – um mecanismo legal de perfil socialdemocrata, em modo soft e diplomático, de intervenção justa em parte do mercado de tecnologia de redes –, não deixa, de certa forma, de configurar, em sentido etimológico, estratégia conservantista: destina-se a preservar a democracia em sua formalidade de Estado de Direito, fase sine qua non (que se espera seja) de respiração histórica e expansiva da dignidade humana no processo civilizatório.

As vertentes progressistas de centro-esquerda e os segmentos políticos, jurídicos e culturais de defesa dos direitos humanos e fundamentais recorrem, assim, ao primado do Estado de Direito contra todas as formas de autoritarismo, para rearranjar as injunções sociotecnológicas do xadrez político e, com isso, impedir avanços e ameaças do que a experiência histórica já demonstrou corroer o próprio Estado de Direito a partir de dentro, bem como o sistema democrático – jovem e (ainda) tênue no Brasil, a merecer cuidados.

Nem se enfatize – por tão óbvio e dispensável – que a priorização da questão do condicionamento corporativo de espaços digitalizados para práticas e discursos de extrema direita jamais pretere a urgência de regulamentação já para proteger e garantir, sem recuo e tergiversação, a privacidade e dados pessoais, à vista de procedimentos empresariais sem transparência quanto ao destino dessas informações sem consentimento dos usuários. Tal ressalva dilata significativamente o recorte de plataformas do presente estudo [incluindo Google (e demais browsers), TikTok, Pinterest, Reddit, Kwai etc.].

A regulamentação das redes de Big Techs – que, aliás, pressupõe regulação contínua; e, uma vez juridicamente assentada, também é politicamente legítima, como demanda pública e democrática – constitui batalha de vida ou morte para a sobrevivência da democracia como valor universal, forma de Estado, regime de governo e modus vivendi cotidiano. Nesse pormenor, não pode haver esmorecimento de resistências no campo progressista.

Sem essa regulamentação dos cybernet businesses – sublinhe-se –, a sanha das Big Techs ameaça a expansão social-histórica da própria civilização democrática. Ou as Big Techs exercem negócios com base em pactos sociojurídicos nacionalizados ou o futuro dos regimes políticos em vários países, especialmente republicanos e/ou parlamentares, prevalecerá sombrio: por ora, a lógica social das plataformas digitais tende a atirar instâncias e mecanismos republicanos da democracia no aterro sanitário da história, o mesmo em que, desde pelo menos 1945, repousa, espumante e inquieto, o nazifascismo.

No mais, “são as democracias que devem regular as plataformas e não as plataformas que devem definir o que é ou o que deve ser a democracia”, anota, acertadamente, Sergio Amadeu da Silveira.

A preocupação política com o tempo longo tem, nesse cenário, justificativa inconteste: conforme antes dito, a regulamentação das plataformas digitais necessita assumir caráter permanente enquanto sistemas educacionais são insuficientes ou impotentes, como instituições sociais, para consolidar, por assim dizer, uma pedagogia de recepção crítica à agenda mediática circulante e, nesse caminho, ciberaculturar usuários em massa, a ponto de impedir que se tornem reféns de discursos e narrativas extremistas, tanto nas dark ou deep Web, quanto em quaisquer grupos ou listas de interação em rede. Se o keynesianismo cibercultural conseguirá realizá-lo, somente a experiência política direta o demonstrará.

Função socioestrutural das plataformas digitais

Essa função regulatória do Estado e da sociedade civil jamais pode ser vista como censura, sequer em padrão semântico clássico. Trata-se, antes, de necessidade macroestrutural em favor da manutenção da democracia como valor universal. O objetivo ideológico do keynesianismo cibercultural consiste em evitar, no âmbito civil da coagulação de fluxos de massa, distorções sistêmico-republicanas que acarretem perigo político a essa preservação.

Censura é, no caso, mecanismo de Estado que recai arbitrária e diretamente sobre o estrato do conteúdo: uma produção simbólica indesejada passa a sofrer sanção autoritária em sua circulação por contrariar interesses vigentes. Diferentemente, o keyenesianismo cibercultural, recobrando estrato diverso, pressupõe, antes de tudo, operação ao nível da função macroestrutural exercida no social por plataformas digitais.

Se essa injunção acaba por alcançar, na ponta, conteúdos ameaçadores, trata-se de consequência do fato de o social equivaler a produção simbólica diuturna (verbal e não-verbal) e ser, por isso, entretecido pela profusão de discursos e narrativas, sem minuto de folga. O deslocamento do foco da questão do conteúdo (produzido por participação individualizada, criadora de rastro de dados) para a problemática da função macrossocial representa aspecto crucial do debate sobre a regulamentação em jogo.

O discurso autodefensivo e acusatório contra a suposta censura às plataformas digitais configura estratagema dissuasório pueril, destinado a camuflar feridas socialmente abertas (por infonegócios endofascistas) mediante drenagem da atenção pública para aspectos equívocos ou laterais – e ainda invocando, nesse expediente, o nome da democracia. Subordina-se a tal diversionismo a tese da moderação de conteúdo. Proposta como alternativa absoluta de solução a toda e qualquer controvérsia, a medida vem sendo – bem ou mal (sob condescendências e, também, vistas grossas) – realizada pelas próprias companhias. Grupos extremistas, no entanto, continuam proliferando nas redes sociais, sob o influxo permissivo de condicionantes corporativas.

A liberdade de empreendimento privado, seja ele qual for, jamais pode caucionar abusos ou excessos que, em prol da prosperidade de negócios legais, extravasem interesses de lucro para o universo simbólico-político da sociedade (numa operação de capitalização de desejos de inclusão, participação e partilha), a ponto de se abrir a pulsões e intenções de violência e morte contra pessoas com modus vivendi diferente, contra o Estado de Direito e contra a democracia como valor universal.

Post scriptum

Em regra, o sistema mediático (de massa, interativo e híbrido), bem como todos os segmentos de luta política em torno de espaços, cargos e razões (dentro e fora do Estado) giram em torno de discursos e narrativas – o que se concentra no terreno das práticas produtoras de conteúdo. Esses contextos estão sujeitos à decisiva espuma simbólica dos dias, na qual disputas de todo tipo jogam chances (materiais e simbólicas) de vida e morte.

A Universidade, ao contrário, está livre para abranger a função socioestrutural tanto dessa espiral de discursos e narrativas, quanto dos sistemas e instâncias tecnoculturais utilizados em sua irradiação. Não por acaso, o presente artigo foi redigido do ponto de vista dessa função macroestrutural – a da Universidade –, ameaçada e vilipendiada pela rusticidade voluntária da extrema direita. (A versão completa do texto será publicada em periódico científico).

Eugênio Trivinho é professor do programa de pós-graduação em comunicação e semiótica da PUC-SP.

Nota

* O controverso Projeto de Lei 2.630/2020, informalmente chamado de “PL das Fake News” [ou, para a extrema direita, “PL da Censura”], esteve para ser votado na Câmara dos Deputados em abril de 2023, depois de aprovação pelo Senado Federal em regime de urgência (ou seja, sem passar por Comissões internas). O Projeto e a reação ultraconservadora a ele reacenderam o debate público. Como esperado, as Big Techs atuaram fortemente – dentro e fora da rede – contra a aprovação da proposta. O arrefecimento da polêmica é aparente. A matéria está na ordem do dia. Ela deve legar ao país a respectiva “Lei de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet.

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