O prof. Roland Veras Saldanha Junior (Economia) esteve presente em uma comissão na Câmara dos Deputados em defesa da priorização das análises de interesse público em defesa comercial. O docente desenvolveu um texto sobre o tema da comissão, leia abaixo.
"É com a mais elevada consideração que dirijo a Vossas Excelências o presente documento, no intuito de abordar as preocupações expressas na exposição de motivos do Projeto de Decreto Legislativo (PDL) 575/2020 se a atualizações trazidas pela posterior regulamentação dos procedimentos de Avaliação de Interesse Público (AIP), conforme estabelecido pela Portaria SECEX Nº 282, de 16/11/23.
Há dois temas principais que gostaria de trazer à debate em nossa contribuição, lastreada em vasta experiência profissional e acadêmica em Defesa Comercial em diversas jurisdições estabelecida nas últimas três décadas, representando interesses da Indústria Doméstica do Brasil, de fornecedores estrangeiros e de importadores: o papel (as funções) das Análises de Interesse Público (AIP) e os cuidados necessários na condução dos ritos de AIP.
Inicialmente, é imperativo reconhecer que as avaliações de interesse público são imprescindíveis e inafastáveis para dar legitimidade e legalidade a quaisquer atos do Executivo no Brasil, em particular naqueles em que existe espaço discricionário para as opções da Administração, sempre vinculadas aos Princípios da Impessoalidade ou da Supremacia do Interesse Público. Na Defesa Comercial, voltada ao Interesse Público da proteção do mercado interno, os remédios às dores alegadas por um segmento industrial específico não podem ser aplicados sem que se considerem e sopesem os efeitos colaterais sobre o resto da indústria ou da coletividade.
Lembra-se que da instrução dos procedimentos na Defesa Comercial brasileira resultam recomendações técnicas pela aplicação ou não de medidas protetivas, sendo deslocada à instância interministerial da CAMEX a decisão de implementação ou não das recomendações. Para que esta decisão estritamente discricionária seja tomada sem ofensa à Impessoalidade, Legalidade, Proporcionalidade e Razoabilidade administrativas, é fundamental garantir oportunidade suficiente para que os administrados potencialmente prejudicados pela providência possam apresentar suas razões: o Interesse Público é indisponível e os ritos de Avaliação de Interesse Público servem para munir os agentes públicos e as instâncias decisórias, i.e., a Camex, com os recursos informacionais necessários a uma determinação Administrativa alinhada às prioridades nacionais. O Interesse Público não é a soma de interesses particulares isolados e as AIP não são obstáculos à função pública da proteção do mercado interno, mas pré-condições para esta proteção. Nestes termos, a regulamentação das AIP traz segurança jurídica, devendo ser explicitamente prevista como meio eficiente e eficaz para permitir CAMEX entendimento amplo e imparcial antes da tomada de decisões que são sempre vinculadas à busca das melhores finalidades públicas e em plena consonância com nossos compromissos internacionais.
Em segundo tema, contemplando a Portaria SECEX Nº 282, de 16/11/23, constata-se problemática a aglutinação dos ritos de AIP e de Defesa Comercial sob o âmbito do Departamento de Comércio Exterior (Decom), em particular pela falta de previsão explícita de independência dos grupos técnicos responsáveis pelos procedimentos que buscam resultados opostos. As instruções e as recomendações de Defesa Comercial e de Interesse Público devem ser realizadas de forma isenta, independente e com máxima objetividade, deslocando-se à CAMEX as complexidades decisórias que envolvam o uso de poderes discricionários em sentido amplo.
A atribuição de responsabilidades das mesmas equipes para produzir recomendações favoráveis e contrárias à imposição de medidas de Defesa Comercial, para além dos desconfortos funcionais trazidos os técnicos envolvidos, traz riscos de sopesamento antecipado ou viesado de evidências e entendimentos, em prejuízo a ambos os ritos envolvidos. Para evitar retrabalhos e revisões posteriores, menos medidas protetivas podem ser recomendadas na Defesa Comercial. Para confirmar recomendações de Defesa Comercial anteriores, menos recomendações de suspensão ou extinção de medidas podem ser produzidas em sede de Avaliação de Interesse Público.
As recomendações de Defesa Comercial e de Avaliação de Interesse público podem ser convergentes ou não, mas devem ser elaboradas com complete isenção e lídimo comprometimento funcional e assim encaminhadas às instâncias decisórias, permitindo que estas cheguem a conclusões a partir de bases informacionais sem máculas. Considerados as diferenças de capacitação e expertise necessárias para a instrução dos complexos casos de Defesa Comercial e de Interesse Público, é importante estruturar equipes ou grupos especializados em cada um dos ritos, assegurando a autonomia e imparcialidade técnica aos agentes envolvidos no atendimento das finalidades públicas que lhes forem atribuídas. Os elementos sob análise na Defesa Comercial em Avaliações de Interesse Público são distintos, e a competência de um não deve invadir o escopo do outro, uma vez que é perfeitamente possível haver situações de dumping sem prejuízo ao interesse nacional, e vice-versa.
A Portaria SECEX Nº 282, de 16/11/23, com vigência prevista para o início de 2024, representa uma tentativa de correção de incongruências identificadas na anterior Portaria SECEX Nº 13, de 29/01/20. Esta última, elaborada sob a égide da concentração dos Ministérios do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC), Fazenda e Planejamento em uma única pasta, evidenciou certos desconfortos que agora buscam ser sanados.
Antes da consolidação do Ministério da Economia, em 2019, a condução das análises de interesse público era atribuída ao Grupo de Interesse Público (GTIP), uma equipe independente lotada no Ministério da Fazenda (MF). Em decorrência da fusão ministerial, as competências foram centralizadas na Secretaria de Defesa Comercial e Interesse Público (SDCOM/Economia), gerando significativas mudanças nos procedimentos e nas dinâmicas dessas análises, notadamente pela sincronização dos ritos de Defesa Comercial e Avaliações de Interesse Público, bem como pela introdução de elementos antitruste no processo.
A gestão subsequente, por sua vez, revelou desafios consideráveis, incluindo a interpretação da AIP como uma questão acessória em relação à Defesa Comercial. Com a recente reorganização ministerial, a função de Coordenação de Interesse Público foi absorvida pelo MDIC, atribuindo aos mesmos técnicos responsáveis pela Defesa Comercial a condução das AIP. A PORTARIA SECEX Nº 237, de 08/03/23, retirou a obrigatoriedade das AIP em processos de Defesa Comercial originais, optando pela abertura de Consulta Pública para colher contribuições sobre o Regulamento de AIP, posteriormente consolidado na PORTARIA SECEX Nº 282/23.
A despeito dos ajustes promovidos, os resultados, quando comparados à Portaria 13/20, suscitam preocupações. A alternativa sequencial aos ritos de Defesa Comercial e AIP, ao limitar a submissão de pleitos de AIP a uma janela de 45 dias após a imposição de medidas, impõe desafios temporais significativos. A ausência de previsão para a formação de um grupo técnico especializado em AIP, deixando a instrução a cargo das mesmas equipes que recomendam medidas de Defesa Comercial, merece cuidadosa reconsideração.
A "excepcionalidade" prevista para alterações, por Interesse Público, de medidas de Defesa Comercial suscita reflexão, especialmente considerando as autorizações do GATT/94 como exceções aos compromissos multilaterais assumidos pelo Brasil. Enfatiza-se que as investigações antidumping e de subsídios são instrumentos protecionistas que devem ser utilizados com discernimento, respeitando a primazia do Interesse Público diante das excepcionalidades da Defesa Comercial.
O atual cenário para o Interesse Público na Defesa Comercial brasileira sinaliza um encolhimento preocupante, abrindo espaço para iniciativas como o PDL 575/2020, que, ao dificultar a não prorrogação de direitos antidumping, busca eliminar qualquer resquício textual ao Interesse Público no Decreto Antidumping 8.058/13. Vale ressaltar que a Defesa Comercial, como função da Administração Pública, perde sua razão de ser quando seus objetivos divergem da supremacia do Interesse Público.
Nesse contexto, insta-se a atenção de Vossas Excelências para a importância de preservar o equilíbrio necessário entre os distintos interesses setoriais e o bem comum (público). As associações setoriais brasileiras, que têm como objetivo primordial a manutenção das análises de Interesse Público, desempenham um papel crucial na promoção de políticas que favorecem o desenvolvimento econômico equitativo.
Roga-se, portanto, pelo engajamento construtivo das Associações setoriais brasileiras na discussão do PDL 575/2020, visando aprimorar a regulamentação de Avaliação de Interesse Público, assegurando que esta seja conduzida de maneira eficaz e consonante com os princípios fundamentais que regem nossa democracia e economia. Com vênias, inexiste qualquer extrapolação de competências do Executivo sobre matéria legislativa quando se regulamenta a forma de garantia a ritos conformes à Supremacia do Interesse Público: a Administração Pública no Brasil não pode agir na Defesa Comercial sem as AIP."