Jornalismo promove encontro com Heródoto Barbeiro e Nilo Frateschi Jr.
Profa. Misaki Tanaka foi responsável pelo evento que aconteceu no laboratório de vídeo
Votação nacional realizada na Rússia entre 25/06 e 01/07 aprovou pacote de emendas constitucionais que permite a Vladimir Putin candidatar-se mais duas vezes à presidência do país. Além disso, as mudanças também possuem relevante significado político relacionado ao legado da era Putin na Rússia. (Créditos da imagem: Kremlin.ru).
Entre 25/06 e 01/07, a Rússia passou por uma votação nacional sobre emendas constitucionais que, entre outros fatores, conferem a Vladimir Putin a possibilidade de permanecer presidente do país até 2036. Especificamente, a nova redação do artigo 81 da constituição russa, ao “zerar” a contagem de mandatos presidenciais exercidos antes da implementação das emendas, permite a Putin candidatar-se à presidência novamente em 2024 e 2030. Antes disso, Putin, por esgotar o antigo teto de dois mandatos consecutivos (2012-2018 e 2018-2024), não poderia concorrer a uma nova eleição em 2024.
Conforme dados oficiais, 67,97% dos eleitores russos participaram do referendo, percentual de comparecimento maior do que os das duas últimas eleições presidenciais. Deste percentual, esmagadores 77,92% (em termos absolutos, mais da metade do eleitorado) aprovaram as emendas. Tal resultado, como de se esperar, foi interpretado de maneira triunfalista pela administração Putin e dá ao presidente uma “prova” de sua sinergia com o que chamou de “maioria absoluta” dos russos.
Por outro lado, houve fortes críticas por parte da fragmentada oposição russa. O famoso ativista Aleksei Navalny, por exemplo, propôs o boicote da votação. Postura similar foi adotada pelo tradicional partido liberal Yabloko (atualmente fora do parlamento), que rotulou as emendas como ilegais e liderou uma iniciativa de pacote constitucional alternativo. Segundo uma pesquisa encomendada pelo Yabloko ao instituto Levada – principal centro de pesquisa de opinião pública independente da Rússia -, este projeto, que implicaria em significativa dispersão de poder no sistema político russo, teria mais adeptos do que a versão pró-Putin posta em votação.
Houve, ainda, uma campanha pelo voto contrário capitaneada por políticos de oposição e a organização “Rússia Aberta”, descendente de organização homônima fundada por um dos principais desafetos de Putin, o magnata exilado Mikhail Khodorkovsky. A campanha “Não !” chamou as emendas de “golpe constitucional” e promoveu protestos contra sua adoção. Pela oposição de esquerda, o Partido Comunista da Federação Russa (KPRF), principal herdeiro do partido comunista soviético, votou contra a emenda de “zeragem” no parlamento e apelou pela rejeição do pacote pró-Putin no referendo.
Autoridades russas, de um lado, e monitores independentes e oposicionistas, do outro, divergem sobre a escala de fraudes e irregularidades no referendo. Cabe ressaltar, contudo, que as últimas projeções – incluindo as do centro Levada, malvisto pelo governo russo – e pesquisas de boca de urna indicavam apoio majoritário às emendas e à possibilidade de reeleição para Putin. Isto pode ser interpretado, em grande medida, como reflexo do genuíno apoio popular ao presidente (apesar de significativo desgaste recente, Putin ainda tem índice de aprovação de 60%) e ao pacote de emendas. Com a entrada em vigor da constituição modificada, Putin fechou exitosamente a etapa inicial do processo que pode prolongar sua já longeva trajetória como líder político da Rússia, iniciada em 1999.
Patriotismo e soberania: o legado político-ideológico de Putin na constituição russa
Além da possibilidade de novas eleições para Putin, a aprovação do pacote constitucional também significa a afirmação de seu legado político-ideológico à frente da Rússia. Ressaltam-se, nesse sentido, aspectos como o patriotismo e a soberania.
Com perfil do que os russos chamam de gosudarstvennik – isto é, um adepto de um Estado forte, com centralização de autoridade e capacidade de defender assertivamente seus interesses na arena internacional -, Putin buscou reverter a turbulenta experiência dos anos 1990 na Rússia – época de aguda deterioração econômica, instabilidade política, humilhações internacionais e ameaças de desintegração territorial.
Os resultados positivos desta missão, na visão de Putin e de seus apoiadores, estão agora consagrados na constituição russa. A inadmissibilidade da “alienação” de partes do território russo, por exemplo, remete à superação das tendências regionais centrífugas na Rússia pós-soviética – particularmente o separatismo checheno – , bem como à controversa anexação da Crimeia ao território russo (2014). Para Putin, a constituição modificada também assegura que a Rússia não repetirá o processo de desintegração da URSS, que levou à tomada de “territórios históricos” russos.
A “nacionalização das elites” e a proteção da soberania russa, que a elite putinista enxerga estar sob constante cerco de um Ocidente potencialmente articulado a uma “quinta coluna” interna, encontram-se teoricamente fortalecidas por artigos que falam no combate à interferência externa e proíbem que servidores públicos e oficiais tenham ativos financeiros, cidadania e residência no exterior. Já artigos como o 79 e o 125 potencialmente limitam a aplicabilidade de decisões de organismos internacionais na Rússia. Esta é uma questão sensível para o governo russo: por exemplo, a Corte Europeia de Direitos Humanos, à qual cidadãos russos têm se dirigido contra seu governo, notabilizou-se por críticas e exigências de reparações em pareceres sobre controversos processos judiciais contra opositores de Putin (como Navalny e Khodorkovsky).
O senso de lealdade, serviço e reverência ao Estado russo, que acompanha Putin desde sua juventude e formação profissional, reflete-se na definição constitucional da atual Rússia como herdeira da URSS e da “história milenar” do Estado russo. Nesse sentido, a contribuição para a formação patriótica das novas gerações, bem como para a “proteção da verdade histórica” sobre a defesa da pátria – tema que tem atraído grande atenção de Putin – tornaram-se papel do Estado.
Relacionada à dupla patriotismo-soberania, a defesa dos “valores tradicionais russos” também encontrou expressão nas emendas. Sob influência das tensões com as potências ocidentais e das críticas vindas destas últimas à situação política na Rússia desde um ponto de vista da democracia liberal, Putin e sua elite acentuaram, desde os anos 2010, um discurso sobre a Rússia como um bastião de virtuosos valores conservadores, tolerantes e patrióticos.
Esta singular “civilização russa”, formada por séculos de vivência dos russos étnicos com os outros povos do império, teria o direito de se desenvolver autonomamente sem abraçar certos valores supostamente universais de um Ocidente moralmente degenerado. Esta construção ideológica se reflete, por exemplo, no artigo 68, que alude aos russos étnicos como núcleo de uma sociedade multiétnica vivendo em harmonia; e no artigo 72, pelo qual o Estado atua pela proteção do “instituto do casamento como união entre homem e mulher”.
Por fim, cabe mencionar o reforço da atuação estatal em prol dos “compatriotas” russos no exterior (artigo 69). Esta é uma questão de potenciais repercussões internacionais: legislação adotada na Rússia em 2019 permitiu que milhares de cidadãos do leste ucraniano, especialmente os das regiões separatistas pró-russas, recebessem cidadania russa. A Rússia já invocou o argumento da defesa de seus cidadãos para justificar a guerra contra a vizinha Geórgia (2008), que tentava reincorporar à força a região separatista pró-russa da Ossétia do Sul – onde milhares de habitantes possuíam passaportes russos.
“Bloco social” renova promessas de bem-estar à população
Outra dimensão relevante do pacote é seu chamado “bloco social”, referente a questões como o acesso à saúde e a indexação do salário mínimo, das aposentadorias e de outros benefícios à população. O “caráter social” do Estado russo já aparece na versão original da constituição (1993), mas este fator adquiriu uma especificidade na era Putin: grande parte da popularidade e da hegemonia putinistas derivam de uma tentativa de contrato social tácito envolvendo a moderação da atividade política em troca de estabilidade e prosperidade socioeconômica.
Durante os anos 2000, época de alto crescimento econômico impulsionado pelas exportações de petróleo, o governo russo conseguiu cumprir sua parte deste contrato com maior facilidade. Entretanto, sob influência de fatores como flutuações negativas dos preços do petróleo, observam-se diminutas taxas de crescimento econômico e da renda per capita desde 2013. Mesmo com avanços em diversos indicadores socioeconômicos, a Rússia na era Putin continuou um dos países com maior concentração de renda e riqueza entre as economias desenvolvidas. Para agravar esta situação, a crise da Covid-19 levou a projeção de queda de 6,6% do PIB em 2020, além de ter elevado o desemprego e corroído a renda dos russos.
Neste contexto, cresceram percepções sociais de que Putin não conseguia prover bem-estar e justiça econômica ao cidadão comum. Também ficaram evidentes demandas de melhoria do padrão de vida e das políticas socioeconômicas, enquanto que a impopular reforma previdenciária de 2018, reflexo da ortodoxia macroeconômica característica da era Putin, levou a grandes protestos. São difundidas percepções de que Putin expressa primariamente os interesses do grande empresariado e da burocracia estatal.
Em vista desses fatores, não é de se surpreender que alusões ao bloco social tenham tido destaque nas falas de Putin, o que sugere uma tentativa de revitalização do contrato social que tradicionalmente constituiu uma de suas bases de sustentação.
Mais Putin em 2024 ?
Desde seu ponto de vista, portanto, Putin conseguiu legitimar a possibilidade de reeleição, afirmar seu legado político-ideológico e oficializá-lo como um direcionamento para o futuro da Rússia. A principal questão, a partir de agora, é a seguinte: Putin aproveitará a manobra constitucional nas eleições de 2024 ?
Ainda é cedo para uma resposta categórica. Recentemente, Putin afirmou ainda não ter tomado uma decisão sobre a reeleição, embora tenha feito alusões críticas ao processo de sucessão como uma indesejável distração. Entretanto, se Putin quiser manter-se como o principal protagonista na política russa também após 2024, uma nova candidatura à presidência, ceteris paribus, deve ser o caminho mais provável.
Mesmo reconhecendo o peso das relações informais de poder e da política palaciana na Rússia, a presidência continuará concentrando prerrogativas constitucionais que conferem os atributos de legalidade e legitimidade prezados por Putin. Além de exercer a “direção geral” sobre o governo, por exemplo, o presidente permanecerá como condutor da política externa e comandante supremo das forças armadas – áreas às quais Putin, absorvido pelas grandes questões da geopolítica internacional, passou a devotar crescente atenção com o passar dos anos. Além disso, o presidente poderá – após a formalidade de consultas com o Conselho da Federação, o senado russo – nomear os ministros das áreas cruciais de segurança, defesa e política externa.
Em comparação com a presidência, as outras duas opções especuladas recentemente pela imprensa e por analistas para a permanência de Putin como líder russo possuem consideráveis custos e desvantagens. A primeira delas foi a liderança de Putin em uma união política com a ex-república soviética vizinha de Belarus. Rússia e Belarus já fazem parte de uma vaga união estatal lançada nos anos 1990 que existe de maneira largamente nominal. Entretanto, a possibilidade de ampliação desta integração a ponto de constituir uma efetiva absorção pela Rússia encontra sérias resistências em Belarus – seja por parte do governo, de seus principais oponentes ou da sociedade bielorrussa em geral. A ciência destes fatores certamente informa o aparente descarte, até agora, de uma “solução bielorrussa” por parte de Putin.
A segunda possibilidade ventilada foi a reforma do Conselho de Estado, um órgão consultivo que congrega representantes regionais, parlamentares e partidários da Rússia criado por Putin em 2000. Modificações na legislação russa poderiam conferir mais poderes a este órgão e seu chefe. Uma das emendas, inclusive, afirma que o Conselho de Estado, formado pelo presidente, participará da formulação das políticas doméstica e externa.
Todavia, esta ideia, por ora, também parece descartada. Putin afirmou que o empoderamento do Conselho de Estado poderia levar a uma deletéria situação de “poder dual” na Rússia, isto é, a formação de dois polos de autoridade política conflitantes. A expressão remonta a contextos turbulentos da história da Rússia, como o intervalo entre as duas revoluções de 1917 e o conflito constitucional entre o ex-presidente Boris Yeltsin e o parlamento no início dos anos 1990, que poderia ter escalado para uma verdadeira guerra civil na Rússia.
Putin defendeu, ainda, uma “forte vertical presidencial”, aludindo à expressão russa “vertical do poder” – isto é, a noção de uma disciplinada cadeia hierárquica de autoridade submetida a um polo central. A menção é consistente com o estilo de governança de Putin na presidência, marcado pela busca pela primazia sobre os principais processos políticos na Rússia – o que sugere, por sua vez, que a afirmação pode não ser mera retórica. Caso planeje permanecer como principal protagonista na política russa, é razoável imaginar, portanto, que Putin poderá se candidatar novamente à presidência em 2024.
* Gustavo Oliveira é doutorando do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp, PUC-SP) e pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos (INCT-INEU) e do Grupo de Estudos sobre Conflitos Internacionais (GECI/PUC-SP).