Novo Estatuto: A autonomia nas origens da universidade

Segundo artigo da série sobre o novo Estatuto

por João Décio Passos | 15 / 10 / 2018 - 14 h

A AUTONOMIA NAS ORIGENS DA UNIVERSIDADE

João Décio Passos, PEPG em Ciência da Religião

 

Identidade confessional e autonomia podem ser vistas hoje como coisas antagônicas e, em muitos casos, irreconciliáveis. A conjuntura sociopolítica moderna regida pela separação entre Igreja e Estado constitui a moldura de fundo da problemática. Ao que parece, ainda estamos longe de uma solução efetiva capaz de conciliar esses dois aspectos inerentes às Universidades confessionais de ontem e de hoje. De um lado o Estado moderno permanece fundado sobre a regra da separação com a religião e, com ele as instituições de ensino se fundam no principio da laicidade. A coisa pública (nos sentidos político e científico) se justifica precisamente como distinta das coisas religiosas restritas às intimidades individuais e confessionais. Por outro, as Universidades confessionais, herdeiras diretas de um modelo institucional medieval, permanecem afirmando suas identidades confessionais, sendo muitas delas chanceladas diretamente pelo Papa, na qualidade de Pontifícias.

A história das universidades ocidentais nos tempos modernos narra a fase mais aguda dessa divergência, bem como a busca de modos de acomodação. Nessa história, o Brasil constitui, por certo, um quadro particular, seja pela sua localização no ocidente latino, seja pela demora na implantação da instituição universitária, em pleno Estado laico de viés positivista, mas também pelo número significativo de universidades católicas e Pontifícias aqui existentes.

De fato, diferentemente do bloco germânico e anglo-saxão, o bloco dos países ocidentais latinos, testemunha uma dificuldade particular na preservação do modelo universitário medieval (naturalmente confessional-católico), na medida em que constituía suas instituições de ensino segundo o espírito e a lei da laicidade política.

      De um modo geral, pode-se afirmar que as instituições confessionais foram sendo assimiladas pelos Estados laicos, na medida em que se mostravam relevantes às finalidades sociais comuns de ambos e, nesse habitat legalmente inóspito, gozou, na verdade, de relativa tranquilidade política, quando não de certos “privilégios”. Por certo, no caso das universidades, a secular tradição de ensino ostentada pela Igreja forneceu a legitimidade para as suas instituições, ao que se somou indubitavelmente a presença de mestres qualificados para o ensino, quando os Estados nem sempre dispunham de quadros profissionais mais qualificados.

A longa temporalidade em que se insere essa problemática configura muitos aspectos a serem analisados. Por ora, recuaremos para as fontes do problema: a constituição das universitates no dinâmico século XIII. Foi precisamente nas origens das universidades que a questão da autonomia se mostrou como um problema fundamental que exigiu reflexão, negociações e arranjos institucionais da parte da Igreja católica, dos poderes políticos locais e da própria comunidade universitária.

 

  1. A origem das corporações de saber

 

As universitates (corporações) emergem na baixa idade média como células sociais e políticas que recriam em suas microestruturas modos de pensar e organizar o poder a partir de uma lógica local que se choca e se adapta na lógica geral da cristandade.  Como outras universitates que vão sendo edificadas no mundo urbano já desde o século XI, essas dedicadas ao saber, corporações de mestres e discípulos, são pautadas igualmente pelo difícil exercício da autonomia: um grupo social que se autocompreende como autônomo em sua organização uma vez agregado em torno de um objetivo comum. Cada universitas nasce como grupo autônomo destinado a uma finalidade e vai sendo institucionalizada por seus membros, por meio de regras (normas codificadas) e de práticas (a agenda regular de ações). Haviam universitates ligadas aos diversos ofícios, assim como aquelas mais amplas de cunho territorial e político, semelhantes às futuras comunas. Todas elas marcham no seio de uma sociedade hierarquizada e têm que construir suas autonomias dentro das condições políticas ali presentes.

As primeiras universidades nasceram, portanto, sob essa razão e regra e colocaram cada vez mais em evidência a causa e os desafios de se estruturarem como entidades autônomas, sobretudo nos momentos de conflitos políticos e ideológicos com os poderes locais de reis e eclesiásticos. A expansão quantitativa e qualitativa da nova instituição foi um fator decisivo dessa inflexão política precoce que expõe as bases da democracia moderna. De fato, muito rapidamente já não se tratava mais de uma corporação local de um segmento profissional, mas de uma universitas de fato universal que acolhia membros advindos de diversas partes da Europa com o intuito de adquirir conhecimentos superiores que fossem além do currículo antigo das sete artes reproduzido pelas escolas católicas urbanas atuantes desde o século X. As grandes cidades eram o palco das novas instituições e as novas ciências, sobretudo aquelas hauridas das obras aristotélicas, eram as fontes que permitiam o avanço da investigação. As universidades nasciam e se expandiam, portanto, como nova instituição que agregava o antigo e o novo: a) as antigas práticas de ensino das sete artes liberais preservadas pelos mosteiros e pelas escolas urbanas; b) os elementos da tradição judaico-cristã, desde os textos bíblicos até a consolidada tradição agostiniana; c) a nova lógica que fornecia as ferramentas para o exercício correto da investigação; d) os antigos e os novos códigos legislativos revalorizados, então, pelas cidades e pelas próprias corporações emergentes; e) os novos textos de Platão e, sobretudo, de Aristóteles que permitiam rever os conhecimentos tradicionais referentes á natureza, ao ser humano, às cidades e a Deus; f) as novas ciências que relacionadas à medicina e à matemática já introduzidas pelos povos árabes.

As quatro Faculdades que passam a compor a universitas studiorum, Artes, Direito, Medicina e Teologia, aglutinavam do ponto de vista teórico, curricular e pedagógico esses conhecimentos assim reestruturados, tendo como dinâmica metodológica precisamente o confronto entre o antigo e o novo, porém dando às novas abordagens uma franca supremacia que não tardará em atrair os desencantos da ortodoxia católica. Não restam dúvidas de que as ciências aristotélicas tiveram um papel reformador, performativo e implosivo em todo o processo. As investigações e o ensino eram pautados pela tensão permanente da preservação da tradição cristã (a doutrina) e a incorporação das novas abordagens. O desafio de articular o antigo e o novo, além dos elementos discrepantes do novo, defrontava-se precisamente com o germe perigoso para a ortodoxia da fé: a autonomia da razão no procedimento de investigação. No seio da universidade, o exercício autônomo da razão, agora alimentado e possibilitado pelas novas ciências, torna-se um dado inevitável e sedutor para os amantes do conhecimento; algo que os controles ortodoxos por si mesmos não dão conta de segurar ou de impedir que avancem. As proibições de uso dos textos aristotélicos por parte dos Papas revelam essa ineficácia política, quando no século seguinte a escolástica de matriz aristotélica revelou, de fato, sua hegemonia nas universidades que já pontilhavam a velha Europa.. O próprio Tomás de Aquino condenado depois da morte vai tornar-se o principal mestre desse sistema de pensamento assumido como “oficial” pela Igreja católica.[1]

A história dos conflitos das universidades nascentes é a história de uma autonomia política e intelectual que está sendo gestada na baixa idade média e que narra a institucionalização da autonomia, em oposição do controle externo por parte das autoridades políticas, leigas ou eclesiásticas. Ainda que se deva afirmar o caráter ambíguo dessa autonomia, ela, de fato, se impôs como valor e regra fundantes das corporações de mestre e discípulos, deixando seu legado para os séculos posteriores.    

 

  1. A construção da autonomia

 

A relação entre autonomia e identidade católica mostrou-se como desafio para a Igreja e para as próprias universidades desde as suas origens. As universitates expressam, de fato, a emergência da autonomia como uma prática histórica de organização sociopolítica, uma espécie de prévia da autonomia moderna que pautará a sociedade de maneira mais ampla e profunda já nos tempos modernos (LIMA VAZ, 2002).

É necessário observar que as corporações não nasciam prontas como organizações autônomas. Elas foram se constituindo na medida das circunstâncias e dos conflitos que envolviam os poderes da época, os poderes eclesiásticos e os poderes civis que buscavam os meios de controlar a nova instituição que, não raro, colocava em questão suas legitimidades e eficácias. Foi precisamente de dentro dos conflitos que a questão da autonomia foi sendo colocada como fundante para as corporações e recebendo o reconhecimento da parte das autoridades eclesiásticas e civis. Como explica Le Goff, foi “lutando, ora contra os poderes eclesiásticos, ora contra os poderes leigos, que elas adquiriram sua autonomia” (2011, p. 94).

As primeiras universidades trouxeram, de fato, conflitos de diversas ordens, envolvendo vários sujeitos nas cidades universitárias. Assim se inscrevem alguns conflitos: a luta pelo direito de ensinar revindicado pela Igreja (hierarquia) quando as escolas criavam práticas independentes, a luta dos chanceleres locais por controlar as universidades concedendo os títulos acadêmicos, quando o clero interno às instituições exercem suas atividades de modo autônomo dispensando tais chancelas, a luta dos poderes eclesiásticos com os poderes dos reis por controlar as instituições, a luta interna das ordens religiosas na busca de influência junto às Faculdades, a luta dos estudantes na busca autonomia em relação aos reis, como no caso dos estudantes de Paris massacrados pelo Reino em 1229 resultando no fechamento da Universidade.   Paris é o caso mais emblemático, pela própria importância como centro de estudos e, de modo especial, pelo lugar central que a teologia aí ocupou, já antes mesmo da instituição de sua grande universidade.

A organização livre e autônoma marcou a fundação da nova instituição e esteve no centro dos sucessivos conflitos com as autoridades civis e religiosas, assim como dos próprios sujeitos que integravam o corpo universitário (LE GOFF, p. 94-98). Nessa luta estiveram presentes poderes “externos” às corporações, no caso bispos, chanceleres e autoridades do clero, assim como forças internas: a disputa entre clero secular e ordens medicantes, assim como entre algumas ordens entre si. Muito embora as universidades se firmem como organização autônoma criativa, eficiente e duradoura, não compuseram a cena de uma conquista simples e harmônica ou mesmo de um processo linear; ao contrário, construíram suas identidades a preço de condenações e de sangue. O exercício concreto e conflitivo da autonomia é que foi exigindo saídas negociadas, primeiramente com os poderes locais e, na sequência, com o poder papal, na época de alcance universal.

 De fato, os conflitos com as autoridades locais, assim como as soluções locais, muitas vezes não ofereciam soluções efetivas e impunha a necessidade de apelos a uma instância superior, no caso ao Papa. Nesse sentido, a autonomia universitária foi uma causa que, a duras penas, se instituiu, contanto, evidentemente, com as instâncias legitimadoras da época. As universidades encontraram no Papa um aliado maior e investido de poderes supremos capazes de garantir as liberdades políticas e investigativas de modo a transcender os interesses e controles locais.
Ademais, interessava obviamente aos Papas expandirem seus raios de influência para o interior das circunscrições políticas locais e afirmarem suas eficiências como promotores da cultura letrada. O poder negociado fica, portanto, explícito: de um lado os Papas exercem suas supremacias e de outro as universidades gozam de autonomia. Essa autonomia concedida-reconhecida era agraciada com um plus jurídico canônico, na medida em que o pontífice concedia aos titulados o direito de “exercício universal” do magistério com a figura da licentia ubique docendi (ULLMANN, p. 45, 169-170).

Ao menos três textos emanados da autoridade pontifícia devem ser citados como fundadores da autonomia universitária: os Estatutos de Robert de Courson (1215), a Bula Super Speculam de Honório III (1219) e a Bula Parens Scientiarum de Gregório IX (1231). O primeiro é considerado o Estatuto fundador da Universidade de Paris: normatiza a relação entre os mestres da escola e estabelece regras limitando o estudo de novos textos aristotélicos relacionados à filosofia natural na Faculdade de Artes.  Fixa, ainda, a duração dos currículos de mestres e doutores e as normas de carreira docente e reconhece a autonomia da universidade para elaborar suas regras pedagógicas e seus próprios estatutos.  

A Bula do papa Honório viria para solucionar supostos exageros da autonomia, talvez contidos no primeiro estatuto elaborado pela universidade. Ao mesmo tempo em que confirma a autonomia já reconhecida pelo Cardeal Courson, estabelece regras restringindo os clérigos ao estudo das ciências profanas, ou seja, do Direito e da Medicina. Mas, é a Bula de Gregório IX que vai, de fato, fundar canonicamente a autonomia universitária. O Documento afirma a importância de Paris como lugar das Ciências, como fonte de sabedoria, importante para o Reino e para a Igreja. Na verdade, a razão da Bula deveu-se ao episódio da greve dos estudantes e mestres que abandonaram a cidade em protesto contra a morte de estudantes por parte da guarda real em 1229. A Bula papal se esforça por reativar a secular escola e trazer de volta os mestres e discípulos exilados da cidade. Ela reconhece o direito de greve da universidade, quando não se faz justiça em tempo hábil, reafirma as restrições aos textos aristotélicos, porém admitindo sua presença, com certas reservas, na Faculdade de Artes. No que se refere ao funcionamento interno da universidade, o papa reafirma a sua autonomia para elaborar as próprias regras, conforme as normas de 1215 (VERGER, p. 193-25).

As universidades assim compreendidas e constituídas exerceram sua função científica e pedagógica em um contexto que mistura tradição da cristandade e germinação da modernidade. Elas nascem como filhas legítimas da Igreja, porém como nova forma de organização social e política que desafia os próprios poderes eclesiástico e civil a encontrarem estratégias legais e políticas para direcionar e controlar a organização autônoma. A tradição consolidada no seio da Igreja que valoriza a educação intelectual não permite retrocessos em relação às novas organizações. Só resta à Igreja legitimar seus objetivos, tutelar suas práticas de ensino e controlar suas organizações.

 

  1. O significado da autonomia nascente

 

A hegemonia da Igreja no âmbito cultural não podia tardar em fazer eclodir no seu próprio seio concepções, práticas e estruturas inéditas, uma vez guardiã, de fato, do patrimônio clássico, defensora da razão e promotora da educação. As mudanças históricas que construíram as corporações ligadas ao conhecimento só podiam, de fato, contar com as heranças cristãs-católicas que haviam reproduzido a cultura letrada pelos séculos afora. As sete artes liberais já haviam encontrado na Igreja um lugar de sobrevivência e desenvolvimento, funcionando como porta de abertura para o diálogo com a cultura letrada, seja nos parâmetros antigos, seja nas novas expressões que vão sendo acolhidas ou reinventadas no contexto histórico do século X. Para além de uma cultura cristã que pudesse centrar-se exclusivamente em princípios transcendentes, na estrita letra dos textos sagrados ou mesmo na autoridade normativa dos dogmas, o cristianismo construiu suas concepções e práticas dentro de um arcabouço cultural que incorporou a alteridade cultural/científica como elemento construtivo. Desde a inserção no mundo helênico e na geopolítica romana, o cristianismo avançara na busca de modos de assimilação dos valores e práticas advindos da cultura de entorno, de incorporação de instituições políticas e de construção de novas sínteses feitas do antigo e do novo.  

As universidades devem ser localizadas nessa lógica histórica de inserção cultural do cristianismo de onde brotará a autonomia como possibilidade e como valor para o exercício do conhecimento. Na medida em que as novas ciências se impõem como evidência racional e as corporações se consolidam como fato, o exercício da autonomia vai emergindo igualmente como dado e valor para o pleno exercício da atividade investigativa e pedagógica; a autonomia de fato clama por reconhecimento da parte das autoridades então constituídas. No entanto, a Igreja terá que criar meios de patrocinar essa autonomia que se mostra como uma ameaça a sua própria ortodoxia, tamanha a sua força de agregação e persuasão. As universitates se impuseram como configurações novas e inevitáveis que vão sendo assimiladas pela política tradicional da cristandade.

O século XIII produzira ao mesmo tempo crise e amadurecimento de um modelo de ensino. A crise diz respeito ao crescimento das escolas com seus docentes e discentes, fazendo surgir novos modos de acomodação e organização, ao surgimento de novos saberes, como a medicina, a matemática e astronomia, advindas do mundo árabe e a retomada do poder papal, desde a reforma gregoriana. As escolas, recebendo aval institucional da Igreja poderiam oferecer as bases teóricas para a legitimação do poder dos papas e bispos, formando seus intelectuais (VERGER, p. 177-185.). O amadurecimento advinha do uso da lógica aristotélica que, pouco a pouco, vai instaurando uma nova maneira de ler os textos bíblicos e, como resultado, construindo um método e um corpo de questões a serem aprofundadas em si mesmas. De igual modo, as novas teorias sobre a natureza e a história evidenciavam cada vez mais uma natureza que funcionava com suas próprias leis e uma historia humana conduzida pela decisão livre dos cidadãos.  A organização universitária dá, portanto, vazão para as novas demandas sociais e teóricas gestadas nas antigas escolas, reconfigurando o saber e suas instituições no contexto urbano. Há, portanto, uma prática acadêmica e política que se efetiva sob as regras da liberdade de investigação e ensino e sob a condução cada vez mais autônoma dos próprios mestres no interior das ciências e das Faculdades que compunham as universidades.

 

A autonomia torna-se, desse modo, a marca das universidades nascentes e, desde então, a marca dessa instituição, legislada até nossos dias pelos Documentos eclesiásticos e pelas legislações civis ocidentais. Contudo, não obstante as ambiguidades políticas dessa autonomia nascente, um dado é certo: as universidades foram blindadas das intervenções dos poderes locais, adquiriram expressão internacional e possibilitaram a investigação e divulgação dos conhecimentos superiores. Se a autonomia universitária nasceu sob o signo da ambiguidade, ela possibilitou, de outra parte, a sobrevivência dessas instituições no decorrer dos séculos. Para a Igreja, as universidades foram no decorrer do tempo o lugar do exercício da razão e da fé, sendo que sobre a matriz edificada pelo mestre Tomás de Aquino, as duas perspectivas gozam de suas autonomias e devem buscar na distinção o diálogo e, até mesmo, na discrepância o diálogo. E nesse contexto a própria teologia se apresenta como uma ciência que se exercita entre as demais, com suas especificidades (Suma teológica, Q 1). Portanto, as ciências investigadas e ensinadas nas universidades configuram-se como práticas teóricas e metodológicas autônomas que fundam a autonomia universitária, tendo em vista a sua finalidade de buscar permanentemente a verdade. Para Tomás permanece válida a tradição que afirma que toda verdade, venha de quem vier, tem como autor o Espírito Santo. Nessa perspectiva, a autonomia da comunidade universitária será reafirmada no decorrer da história pelo magistério papal, pelo magistério extraordinário e pelas autoridades eclesiásticas, não com mera concessão política, mas como valor inerente à vida acadêmica e política da universidade.

Talvez se possa pensar na universidade como produto social, político e cultural pioneiro que historicamente traduziu os princípios cristãos, de natureza teológica, em princípios e em práticas secularizadas no seu exercício intelectual e político. Em termos judaico-cristãos, a positividade da criação e, por decorrência, do ser humano adquire, agora, uma expressão histórica inédita no sentido de viabilizar o domínio da razão sobre o mundo e a história, o que conta com o amparo da própria teologia e dá continuidade à inserção política e cultural do cristianismo com suas instituições de ensino consolidadas. A autonomia, historicamente construída e politicamente delimitada no exercício das universitates, não constituiu um produto estranho à teologia cristã, mas, ao contrário, foi exercitada e legitimada como valor, na medida em que expressava e possibilitava o exercício da busca da verdade pelas vias da razão (das ciências e das novas ciências) e da fé (as verdades reveladas), exercício fundado no próprio Autor da verdade e da inteligência humana.

 

***

 

A Igreja medieval gestou a universidade e a autonomia universitária, ainda que de um modo conflitivo e sujeito a todas as críticas políticas, segundo nossos parâmetros atuais. No entanto, deixou esse legado para a posteridade e não se furtou a reafirmá-la em cada momento em que se propôs a pensar a universidade nos diferentes contextos históricos. De fato, em todos os Documentos eclesiais dedicados à questão, a autonomia foi reafirmada como direito e valor das comunidades universitárias (PASSOS, 2018). A identidade católica não se mostrava como diretamente conflitante com a autonomia universitária, embora esteja colocada como uma questão subjacente no processo de negociação das universidades com as autoridades religiosas. A autonomia é uma prática e uma ordem jurídica gestada por dentro das identidades católicas escolares, da mesma forma que por dentro da cristandade e por dentro do regime teórico escolástico; nasce como valor e prática conaturais à tradição cristã que valoriza a investigação e o ensino como direito e dever da criatura humana que busca a verdade e tende a ela por determinação do próprio Criador. Em todos esses aspectos, a identidade cristã-católica constituía um dado natural inquestionável pelas consciências políticas de então. Com efeito, foi precisamente nesse habitat cultural e religioso que a autonomia foi sendo construída como valor suportado, negociado e aprovado pelas autoridades eclesiásticas e, de modo direto, pela autoridade papal. Triunfaram a visão, a prática e a jurisdição da autonomia como valor que nasce e cresce no claustro universitário e adquire status canônico com as Bulas papais com os próprios Estatutos elaborados por aquelas corporações. A autonomia da universidade constituía o espaço natural de exercício da autonomia investigativa que avança na busca da verdade.

 As universidades atuais e, de modo direto, as confessionais católicas são as herdeira dessa tradição gestada no século XIII. Olhar para o passado será importante para compreender o presente, mas também para aprender dele o que possa nos ensinar. A autonomia nasceu com as universidades e permanece como fonte e caminho do ensino, da pesquisa e da extensão em nossos dias.

 Por ora, vale relembrar os termos vigorosos da Carta escrita por Gregório IX ao bispo de Paris por ocasião dos conflitos emblemáticos envolvendo a universidade tida sob sua jurisdição:

 

Enquanto um homem sábio em teologia é semelhante à estrela da manhã que brilha em meio à névoa e deve iluminar sua pátria pelo esplendor dos santos e aplacar suas discórdias, tu não te contentaste em negligenciar esse dever mas, segundo as afirmações de pessoas dignas de fé, foi por culpa de tuas maquinações que o rio do ensino das altas letras, o qual depois da graça do Espírito Santo, irriga e fecunda o paraíso da Igreja universal, saiu de seu leito, quer dizer, da cidade de Paris, onde se exibia vigorosamente até então. Como consequência, dividido por muitos lugares, ele ficou reduzido a nada, da mesma forma que seca um rio desviado de seu leito e transformado em vários pequenos regatos (LE GOFF, p. 98).

 

 

 

Referências

 

LE GOFF, Jaques. Os intelectuais na idade média. Rio de Janeiro: José Olímpio, 2011.

LIMA VAZ, E. C. Raízes da modernidade. São Paulo: Loyola, 2002.

VERGER, Jacques. Cultura, ensino e sociedade no ocidente nos séculos XII e XIII. Bauru: Edusc, 2001.

PASSOS. J. Décio. Ensino Superior e Magistério da Igreja; a meta da verdade e o método do diálogo. In Theologica Xaveriana 68, Bogotá, 2018.

TOMAS DE AQUINO. Suma Teológica I. São Paulo: Loyola, 2001.

ULLMANN R. Aloysio. A universidade medieval. Porto Alegre: Edpucrs, 2000.

 

[1] Em 1215 (Proibição da Física e da Metafísica pelos estatutos parisienses elaborado por Roberto de Courson), 1231 (proibição da Ética e do De anima por Gregório IX) 1255 (Faculdade de Artes institui o estudo da Física e da Metafísica), 1260 (mestres franciscanos denunciam o aristotelismo radical da Faculdade de Artes), 1270 (condenações às teses aristotélicas averroístas por Etienne Tempier, bispo de Paris), 1276 (mestres da universidade de Paris são condenados pela inquisição), 1277 (condenações de 219 proposições ligadas ao aristotelismo da Faculdade de Artes e abertura de processo contra Tomás de Aquino, já falecido três anos antes) (VERGER, p. 277-297).

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