Artigo: "misericórdia exige um novo coração"

Autoria do prof. Fernando Altemeyer Júnior (Ciências Sociais)

por Redação | 16/06/2023

Misericórdia é a oferta do Amor que brota do coração de Deus. Escreve Santo Tomás de Aquino: “Ser misericordioso é próprio de Deus e é pela misericórdia que Ele principalmente manifesta sua onipotência” (Tomás de Aquino, Suma Teológica, II-II, q. 30, a. 4, São Paulo: Loyola, vol. V, 2004, p. 420). Compaixão precisa ser entendida como ‘ser afetado’, como forma universal de revelação.  Deus exige misericórdia e não sacrifícios nem oferendas. Assim proclama o profeta Oseias: “Eu quero a misericórdia, e não o sacrifício; e o conhecimento de Deus, mais do que os holocaustos” (Os 6,6). 

A misericórdia é ter o nosso coração sentindo a causa do pobre (misere+cordis). O misericordioso é quem está atento à infelicidade, à dor ou ao mal que o outro padece. É alguém que tem um coração machucado pela miséria alheia. Compaixão está ligada ao sentir pena, condolências e ser capaz de ser afetado pela miséria alheia. Muitas vezes é descrita como sentimento piedoso de simpatia para com a tragédia pessoal de outrem, acompanhado do desejo de minorá-la, mas é certamente muito mais que isso. Expressa uma participação espiritual na infelicidade alheia suscitando um impulso altruísta de ternura para com o sofredor (cf. Dicionário Houaiss, 2001, p. 773).

Em latim, miserere, traduz-se por sofrimento comum ou comunidade de sentimentos. Em grego, Páthos é algo que estimula o sentimento ou piedade, e que suscita paixão, excesso e uma passagem e mutação pessoal naquele que experimenta. Misericórdia suscita o duplo movimento de sentimento e afetividade e também de ação, mudança e reflexão, pois vai da melancolia à ternura efetiva. Em tempos remotos, misericórdia ou compaixão estiveram carregadas de teor pejorativo, deturpadas em afetação exagerada, pois permanecia no paternalismo e na superficialidade dos gestos externos. O misericordioso seria alguém que “precisa” que haja pobres para “mostrar-se como um ser generoso e bom”. É uma misericórdia falsa que rima com hipocrisia para justificar as migalhas das elites que escondem a exploração de milhões de escravos humanos. Dão os anéis para não perder os dedos e ainda fazem publicidade deste paternalismo.

Outras vezes a compaixão foi entendida como algo patológico. Compaixão ligada ao sofrer resignado e masoquista. Este conceito, em nossa civilização ocidental, marcada por um ativismo feroz construirá a ideia errada da passividade. Dores psíquicas e físicas serão vistas como sempre negativas e deprimentes. Stefan Zweig chegará a afirmar que a piedade é sempre perigosa. Entretanto, vale dizer que a misericórdia não é estática ou mecânica, inerte ou daninha. Ela é amor fecundo, misterioso e dialógico. A misericórdia revela a própria pessoa de Jesus e de seu Evangelho. É o próprio Jesus quem proclama: “Bem-aventurados os misericordiosos, porque eles alcançarão misericórdia” (Mt 5,7). A misericórdia é a chave-de-ouro para seguir Jesus e realizar a sua missão no mundo. Assim proclama o evangelista Mateus em sua boa notícia: “Jesus, porém, ouvindo, disse-lhes: Não necessitam de médico os sãos, mas, sim, os doentes. Ide, porém, e aprendei o que significa: Misericórdia quero, e não sacrifício. Porque eu não vim a chamar os justos, mas os pecadores, ao arrependimento” (Mt 9,12 -13). 

É preciso resgatar o caráter ativo da passividade evangélica, compreendida como uma visita de Deus que salva e se compadece como quem ouve o irmão que sofre e clama por compaixão. Assim canta o salmista: “Miserere mei, Deus: secundum magnam misericordiam tuam. Et secundum multitudinem miserationum tuarum, dele iniquitatem meam - Tem misericórdia de mim, ó Deus, segundo Tua grande misericórdia. Por Tua grande compaixão, apaga as minhas iniquidades (Salmo 51/50, 1)”.
Ela é a qualidade e a virtude interior para aceitar uma revelação que nos comove. A passividade misericordiosa pode ser compreendida como esta chave de transformação interior. Esta abertura imprescindível ao outro, sem o que não há de fato vida humana e cristã. A misericórdia é sempre uma passividade simpática, ou seja, um deixar-se comover por dentro de nossas entranhas. Misericórdia é um abrir-se ao outro e quebrar o coração empedrado, pela força do Espírito de Deus, que nos quer seres amorosos. Quem não for capaz disso se desnatura, endurece, fica empedernido, esviscerado, tornando-se insensível e inflexível. Em lugar de um cristão teremos um funcionário de ordens e leis. Em lugar do amor, ouviremos palavras vazias ou duras. Assim pode-se afirmar que a misericórdia vincula o sujeito ao exercício ativo de sua afirmação humana plena e não ao desnaturar a imagem divina que cada ser humano é, desde a eternidade. A misericórdia é como que um transplante de coração. Ela faz novo o nosso velho coração. Corações aquecidos pelo amor de Deus se renovam e mudam o mundo. Assim cantam os cristãos de forma tão bonita: “Dá-nos um coração, grande para amar. Dá-nos um coração, forte para lutar”. 

Neste sentido podemos entender o poeta latino que diz: “Homo sum: nihil humani a me alienam puto” - sou humano, nada do que é humano pode ser alheio a mim (Publius Terentius Afer, Heauton Timoroumenos, verso 77, in: http://www.thelatinlibrary.com/ter.heauton.html). Esta é a resposta que Cremes oferece a Menedemo quando este lhe pergunta por que se interessava por coisas que não lhe diziam respeito. 

Este mesmo pensamento foi retomado por Ernest Hemingway (“Por quem os sinos dobram”), que ressalta o fato de que qualquer morte humana o diminuía porque ele fazia parte da humanidade e, portanto era inútil perguntar-se por quem o sino estava dobrando: estava sempre dobrando por ele. Diz  o escritor em seu poema: “Nenhum homem é uma ilha isolada; cada homem é uma partícula do continente, uma parte da terra; se um torrão é arrastado para o mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse a casa dos teus amigos ou a tua própria; a morte de qualquer homem diminui-me, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntes por quem os sinos dobram, eles dobram por ti (Ernest Hemingway,  Por quem os sinos dobram, Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2004, prefácio do livro)”. 

A misericórdia está ligada a este doer comum, ao ato de fazer-se participante da dor vivida por outra pessoa ou exprimir sua coparticipação. É a capacidade de sentir-se próximo e partícipe de outras dores. Ouçamos  novamente o poeta latino: Tu si hic sis, aliter sentias - Se estivesses no lugar dele, sentirias de modo diferente – (Publius Terentius Afer, Andria, verso 310, in: http://www.thelatinlibrary.com/ter.andria.html). A compaixão realiza uma mudança de lugar existencial e ético. Ela altera o nosso estado vital que se faz participação ativa e decisiva na experiência dolorosa das pessoas. Sentimo-nos sírios com os sírios, palestinos com palestinos, yemenitas com yemenitas, eritreos com os eritreos, sudaneses com os sudaneses, haitianos com haitianos, coreanos com coreanos, ucranianos com ucranianos, angolanos com angolanos, líbios com os líbios, judeus com os judeus, budistas com os budistas, muçulmanos com muçulmanos, cristãos com todos os cristãos, e enfim, plenamente humanos com toda a humanidade. Ao participar das experiências e sofrimentos dos outros, o pensar pessoal se altera, com a mudança na posição que assumimos. Se cada pessoa for capaz de silenciar e acolher passivamente a outra dor em seu interior, ela se torna nova criatura. Assim experimenta o Apóstolo Paulo e alegremente canta: “Pois nem a circuncisão é coisa alguma, nem a incircuncisão, mas o ser nova criatura” (Gl 6,15).

Santo Tomás de Aquino, na Suma Teológica, ao se perguntar se o mal é o motivo próprio da misericórdia, responde: “Sendo a misericórdia a compaixão pela miséria alheia, ela é propriamente relativa a outrem e não a si mesmo a não ser por uma certa comparação, como também a justiça, enquanto no homem se considerem diversas partes como diz Aristóteles no livro V de sua Ética”(Tomás de Aquino, Suma Teológica, II-II, q. 30 a.1, ad 2, São Paulo: Loyola, vol. V, 2004, p. 415). 
O filósofo Enrique Dussel retoma isto dizendo que: “O fato de que o rosto do miserável possa ‘interpelar-me’ é possível porque sou ‘sensibilidade’, corporeidade vulnerável a priori. Sua aparição não é uma mera manifestação, mas uma revelação; sua captação não é compreensão, mas hospitalidade; diante do outro a razão não é representativa, mas presta ouvido sincero à sua palavra” (Enrique Dussel, Ética da Libertação na idade da globalização e da exclusão, Petrópolis: Vozes, 2000, p. 367).  O ouvir sincero é o primeiro passo da mudança necessária no pensamento compassivo. 

Compaixão está sempre vinculada à realização da síntese entre o sofrer e a felicidade. Unir o sofrimento e a beatitude é o segredo que precisa ser desvelado. Saber distinguir as diferentes espécies de dor e alegria exigirá discernimento e compromisso de vida e de coração. 
Simone Weil afirma: “Não são a alegria e a dor que se opõe, mas espécies de uma e de outra. Há uma alegria e uma dor infernais, uma alegria e uma dor terapêuticas, e uma alegria e uma dor celestes” (Simone Weil, La pesanteur et la grace, Paris: Pocket France, 1993, p. 109). Só quando as cordas de dois violões estiverem afinadas é que ao vibrar de uma delas teremos o reverberar da outra. E isto se dará a partir de gestos generosos e subterrâneos. Dirá o personagem Ivan Karamazov da obra de Dostoievski: “Para que se possa amá-lo (o purulento) é preciso que o homem esteja oculto; desde que ele mostra seu rosto, o amor desaparece” (Fiodor Dostoievski, Os irmãos Karamazovi, São Paulo: Abril Cultural, 1973, livro V, cap. 4, p. 178). A réplica de Aliocha será oportuna e reveladora de outra perspectiva: “Para almas inexperientes, o rosto de um homem é um obstáculo ao amor” (idem, p. 178). Almas experientes assumem o rosto do outro como revelação e não como um obstáculo ao amor. A dor se torna possibilidade de ação e desvelamento de uma humanidade melhor. O rosto e o olhar são as janelas da alma e a compaixão é o caminho seguro da santidade. 

O conceito misericórdia tem a sua essência fundada no sofrer e na afetividade. Sofrimento que nos move para a comiseração. Sofrer compreendido como capacidade de suportar experiências vitais e mesmo pessoas reais que devam ser apoiadas. Sofrimento não só como dor e padecimento, mas como a capacidade de alçar voo e arcar com determinado peso sem ser muleta ou falsificação da identidade pessoal do que sofre e nem depressão e morte de quem assume a dor. Sofrimento vivido como uma experiência humana de passividade transformadora. Passividade não entendida como negação ou aniquilamento do sujeito, mas uma quietude e um silêncio imprescindível para que sejamos visitados por outrem. O sofrimento do outro anuncia a impotência do sentimento e anuncia a possibilidade do sujeito existir de fato como ser humano, pois a essência da subjetividade é a afetividade (Michel Henry, L´essence de la manifestation, Paris: Presses Universitaires de France, 1990, p. 595). Todo ser humano é inseparável da experiência e manifestação da afeição, e nela reside de forma radical a sua essência. A afetividade faz o que somos e aquilo que podemos ser. A afetividade é a revelação original de nosso projeto humano. Sem misericórdia e compaixão nos perdemos e morreríamos à míngua.

No sofrer compartilhado podemos ver a beleza e a estatura de uma pessoa e de uma cultura. A compaixão é o termômetro que indica a saúde de um povo e de uma Igreja. O sofrimento é a revelação originária do absoluto, pois “sua revelação pressupõe a revelação do absoluto, se funda nela e lhe é idêntica” (Michel Henry, p. 840). Pessoas sensíveis, pessoas plenas. Pessoas sem compaixão, humanidade destroçada e aniquilada. O sofrer e o compadecer são revelações do absoluto de Deus e de seu amor. Há na dor uma Palavra que não é de morte, mas uma Palavra plena de vida (Michel Henry, p. 840). Ao mergulhar no sofrimento, nós o ultrapassamos. A misericórdia é a porta do amor infinito de Deus.

A misericórdia pode ser a única alternativa contra o mal extremo: “Parece-nos que a compaixão é a única instância e força contra possíveis perversões, quando o mal se apresenta em suas formas extremas. Para nos lembrarmos mais uma vez do resultado encontrado acima: a compaixão pressupõe proximidade, isto é, a visibilidade do sofrimento de alguém. Em face deste sofrimento é despertada a vontade direta de ajudar, não importando de onde venha o sofrimento, se por circunstancias onde não existe culpa ou se por crueldade dos homens. Esta vontade direta de ajudar é a característica essencial da compaixão. A partir daqui pode-se dizer: a compaixão é a extrema e última possibilidade de salvar a pessoa em sua ‘existência nua’ em face da negação direta desta existência” (Walter Schulz, Filosofia num mundo modificado, in: Boff, Leonardo, Principio de Compaixão e cuidado, Petrópolis: Vozes, 2001, p. 36). 

Proclama vigoroso o Papa Francisco na Bula do Ano Santo da Misericórdia: “A misericórdia de Deus é a sua responsabilidade por nós. Ele sente-Se responsável, isto é, deseja o nosso bem e quer ver-nos felizes, cheios de alegria e serenos. E, em sintonia com isto, se deve orientar o amor misericordioso dos cristãos. Tal como ama o Pai, assim também amam os filhos. Tal como Ele é misericordioso, assim somos chamados também nós a ser misericordiosos uns para com os outros.  A arquitrave que suporta a vida da Igreja é a misericórdia. Toda a sua ação pastoral deveria estar envolvida pela ternura com que se dirige aos crentes; no anúncio e testemunho que oferece ao mundo, nada pode ser desprovido de misericórdia. A credibilidade da Igreja passa pela estrada do amor misericordioso e compassivo.  A Igreja ‘vive um desejo inexaurível de oferecer misericórdia’ (Evangelii Gaudium 24). Talvez, demasiado tempo, nos tenhamos esquecido de apontar e viver o caminho da misericórdia. Por um lado, a tentação de pretender sempre e só a justiça fez esquecer que esta é apenas o primeiro passo, necessário e indispensável, mas a Igreja precisa de ir mais além a fim de alcançar uma meta mais alta e significativa. Por outro lado, é triste ver como a experiência do perdão na nossa cultura vai rareando cada vez mais. Em certos momentos, até a própria palavra parece desaparecer. Neste Ano Jubilar, que a Igreja se faça eco da Palavra de Deus que ressoa, forte e convincente, como uma palavra e um gesto de perdão, apoio, ajuda, amor. Que ela nunca se canse de oferecer misericórdia e seja sempre paciente a confortar e perdoar. Que a Igreja se faça voz de cada homem e mulher e repita com confiança e sem cessar: ‘Lembra-te, Senhor, da tua misericórdia e do teu amor, pois eles existem desde sempre’ (Sl 25/24,6)” (Bula Misericordiae Vultus, Papa Francisco, Roma, 11/04/2015).

Conhecer o coração de Deus, amá-lo e saborear as suas graças e misericórdias fará brotar em nosso coração um amor semelhante ao dele. Como sussurra a cada manhãzinha, o meu querido amigo, pastor e bispo dom Angélico Sândalo Bernardino, diante do Santíssimo Sacramento: “Meu Jesus amado, manso e humilde, toma aqui o meu coração! Fica com ele durante todo este dia e me empresta o Teu para que eu caminhe com ele por onde eu for! Façamos esta troca, meu Jesus, só por hoje, eu Te peço! Eu te dou o meu coração e você me dá o Teu. Obrigado, meu Jesus”. Assim fazemos a nossa parte humana enquanto Jesus nos plenifica com seu amor divino. Para poder orar cordialmente: “Sagrado Coração de Jesus, confio e espero em Vós”.

Prof. Fernando Altemeyer Júnior (Ciências Sociais).

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