Cuidados paliativos: o cuidado além da doença

Artigo da profa. Amanda Celeste Gonçalves Campos (Medicina)

por Redação | 19/10/2022

Texto de autoria da profa. Amanda Celeste Gonçalves Campos, Médica graduada pela Faculdade de Ciências Médicas e da Saúde (FCMS) da PUC-SP; especialista em Clínica Médica pela Unicamp e em Medicina Paliativa pela USP e professora do curso de Medicina da FCMS da PUC-SP

 

Conquistamos, no último século, um aumento impressionante na expectativa de vida na maior parte do planeta. Hoje, vivemos duas vezes mais do que um brasileiro nascido há cem anos sonhava viver. Esse cenário é fruto de diversas políticas públicas, desde a ampliação do saneamento básico e do avanço das ciências médicas, que descobriram e desenvolveram tratamentos revolucionários.

 

Essas conquistas, no entanto, alimentaram a criação de expectativas preocupantes. Uma vez que podemos evitar ou postergar a morte em diversos cenários, nós, automaticamente, chegamos à conclusão de que ela sempre pode ser combatida.

A morte, hoje, tornou-se uma experiência vergonhosa, uma derrota, um fracasso dos pacientes e das equipes de saúde diante da doença. Quando uma pessoa falece devido a uma doença crônica, comumente escutamos frases bem-intencionadas, porém, profundamente insensíveis, como, por exemplo, “perdeu a luta”.

Essas frases se referem a uma realidade que não existe, uma realidade em que a morte não é o nosso desfecho inevitável – não há remédio para este fato, nem ação médica que o modifique.

Frases dessa natureza trazem uma cobrança cruel de que a cura da doença depende, exclusivamente, da vontade de lutar. Contudo, jamais poderemos escapar do fato de que a pessoa doente é um ser humano falível e limitado, assim como os profissionais de saúde que dela cuidam.

Nossa insensibilidade diante daqueles que convivem com doenças graves foi ilustrada na repercussão do falecimento do prefeito de São Paulo, Bruno Covas, que conviveu por dois anos com um câncer gastrointestinal. Covas exerceu suas funções como prefeito até duas semanas antes de seu falecimento e se manteve ativo durante toda a sua trajetória de adoecimento. Quando sua piora parecia irreversível, posicionou-se de forma clara diante de sua equipe de saúde: não queria tratamentos que prolongassem a sua vida de forma artificial.

Apesar disso tudo, agimos de forma automatizada ao dizer que ele “perdeu para o câncer”. Falecer tão jovem é uma tragédia, sim. Mas é justo dizermos que ele perdeu?

Essa crença perigosa é ainda compartilhada por alguns profissionais da saúde e familiares. O resultado do despreparo das equipes de saúde, dos próprios pacientes e de suas famílias diante da morte são tratamentos inúteis que provocam sofrimento às pessoas com doenças irreversíveis. Acoplamos os pacientes que estão morrendo em dois ou três aparelhos diferentes, pretendendo substituir seus órgãos em falência, sem perspectiva de melhora, apenas para ficarmos certos de que “tudo foi tentado”. Enquanto isso, os fatos mostrados por alguns estudos são cruéis: a maior parte dos pacientes que falecem em Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) morre em grande sofrimento, experimentando dor intensa em seus últimos dias de vida.

Os cuidados paliativos surgiram em resposta a essa medicina “insuficiente”, seguindo, efetivamente, o caminho contrário. Segundo a Organização Mundial da Saúde, o cuidado paliativo é “uma abordagem que melhora a qualidade de vida de pacientes (adultos e crianças) e famílias que enfrentam problemas associados a doenças ameaçadoras da vida”. Seu principal objetivo é a prevenção e o alívio do sofrimento que vem do diagnóstico e da convivência com uma doença potencialmente fatal.

A definição é abrangente. O cuidado paliativo deveria ser rotineiro na atenção a qualquer paciente portador de uma doença grave, afinal, essas doenças tendem a provocar sofrimento em todas as dimensões do ser humano – física, psíquica, social e espiritual. Nesse mundo ideal, o paciente portador de câncer, por exemplo, seria acompanhado, simultaneamente, pelo oncologista – que prescreveria o seu tratamento oncológico – e por uma equipe de cuidados paliativos – que abordaria o sofrimento provocado pela doença, oferecendo todo o cuidado que permita ao paciente uma vida que ele considere digna e com a melhor qualidade possível.

Mais urgente, no entanto, é a disseminação do conceito e da prática dos cuidados paliativos diante da inevitabilidade da morte. Nós, profissionais da saúde, podemos fazer muito mais pelo doente do que prolongar indefinidamente a sua vida. Não podemos curar nem controlar todas as doenças do mundo. No entanto, devemos sempre aliviar o sofrimento. Essa é nossa obrigação enquanto seres humanos que se propõem a cuidar de outros seres humanos.

Que possamos, progressivamente, enxergar a proteção da qualidade de vida e da dignidade como sucesso, conceitos que vão muito além do tempo de (sobre)vida. Que reconheçamos, com humildade, quando os recursos da ciência contra a doença se esgotam, para então dedicarmo-nos exclusivamente àquilo que sempre deveria ter sido prioridade, àquilo que os cuidados paliativos pregam: ajudar nossos pacientes a viver da melhor forma possível.

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