LAEL: pesquisadora recebe nota 10 por tese sobre construção de identidade no discurso de mulheres negras

Tania Regina Barreira Rodrigues também é mestre pela PUC-SP

por Bete Andrade | 01/07/2021

Investigar a construção da identidade sociopessoal no discurso de mulheres negras brasileiras. Com este tema, a pesquisadora Tania Regina Barreira Rodrigues acaba de obter o título de doutora no Pós em Linguística Aplicada e Estudos da Linguagem (LAEL).

Orientada pela profa. Beth Brait e intitulada Análise dialógica dos discursos de mulheres negras em eventos de leitura – construção de sentidos e identidades, a tese foi defendida em 10/6 e rendeu a Tania uma nota 10. A pesquisadora já era mestre pela PUC-SP, título obtido com um trabalho que abordou os tropos e as metáforas no discurso de Martin Luther King Jr.

O racismo e a linguística sempre interessaram Tania, mas a questão se mostrou ainda mais instigante para a pesquisadora após o verão de 2015, quando participou de um curso sobre afro-americanos no Instituto de Pesquisa de Estudos Afro-Americanos da Universidade de Columbia, em Nova York (EUA).

Única brasileira no grupo, Tania conta que era questionada sobre a veracidade de que, em nosso país, pessoas negras rejeitariam a ideia de se considerar pertencentes a esse grupo étnico. “Os norte-americanos me perguntaram se no Brasil havia mesmo afrodescendentes que rejeitavam seu grupo étnico-racial de pertença e não se consideravam pretos", afirma. "Essa pergunta me deixou muito inquieta. Então eu lhes falei sobre a mestiçagem no Brasil e de como aqui havia diferentes fenótipos. Eu sabia que existiam muitos afrobrasileiros que não se autodeclaravam pretos e preferiam ser chamados de morenos ou mulatos para evidenciar a sua mestiçagem com o branco ou indígena e omitir a descendência africana. Também sabia que essa questão estava intrinsicamente relacionada ao forte racismo que permeia a sociedade brasileira", afirma Tania. Ao voltar da viagem, ela decidiu estudar as questões étnico-raciais brasileiras. "Escolhi investigar a identidade sociopessoal nos discursos de dez mulheres negras brasileiras produzidos em eventos de leitura”, conta.

 

Participantes e metodologia

Para a pesquisa, Tania optou pela técnica de grupo focal e escolheu dez mulheres negras de um curso de “Educação, relações étnico-raciais e sociedade”. Elas leram e discutiram contos e poemas com a temática étnico-racial. “A análise dos discursos em circulação se apoiou nos fundamentos teórico-metodológicos do livro Bakhtin e o Círculo, de Beth Brait; mobilizamos os conceitos de dialogismo, alteridade, signo ideológico e tema. O conteúdo temático dos contos e poemas orientou as discussões nos encontros, porém as participantes se posicionaram como sujeitos e ressignificaram os textos, atribuíram-lhes sentidos. A escolha por textos literários para a discussão estimulou a produção de discursos de autorreflexão, memória, crítica social e cultural”, conta Tania.

Os textos selecionados foram significativos, segundo a pesquisadora, porque abordam questões que afetam a população afrobrasileira. “Escolhi contos e poemas de mulheres pretas, como Silvana Martins, Mel Duarte, Chaia Dechen, Preta Val, e também de homens, Alfredo Boff e Benicio Santos Santos", afirma.

O primeiro conto escolhido para discussão foi Impressões de uma infância, de Silvana Martins, publicado nos Cadernos Negros, em 2013. Com o texto, Tania quis que as participantes falassem da infância. “A protagonista é uma menina preta que tem a mãe branca e o pai preto. A mãe leva a garota, frequentemente, para alisar os cabelos, mas ela não gosta porque fica muito tempo sentada na cadeira do salão de cabeleireiro e pelo cheiro da química usada no procedimento. Quando termina, ela também se olha no espelho e sente um estranhamento diante da imagem que vê”.

O conto aponta para questões que envolvem a vida das mulheres negras, como o alisamento do cabelo e a falta de representatividade nos brinquedos infantis. A pesquisadora conta que o texto avivou a memória de infância das participantes. “Foi um encontro muito intenso, porque elas recordaram o bullying que sofreram na escola por terem cabelo crespo, a falta de liberdade, a dificuldade para manter os cabelos alisados e também como tudo isso foi descaracterizando sua auto imagem e afetando a formação de sua identidade negra. O cabelo crespo é um traço africano inegável e óbvio”, ressalta a pesquisadora.

Tania conta também que, num segundo encontro, abordou novamente o tema, mas sob outra perspectiva. Para isso, usou o conto Meu cabelo de negro, de Benício do Santos Santos. No texto, um menino que nasceu em Salvador e sempre exibiu com orgulho as suas tranças africanas é obrigado a cortar os cabelos quando chega o momento de entrar no mercado de trabalho. No entanto, o personagem faz carreira na empresa e, quando alcança um cargo de chefia, passa a apoiar a entrada de negros, inclusive aqueles que usam tranças como as que ele usava. Ao se sentir estável com a situação, deixa suas tranças crescerem novamente.

“Esse conto provocou depoimentos que apontaram para a discriminação racial no ambiente de trabalho e sobre como os símbolos da cultura negra são desvalorizados no país. As participantes falaram, por exemplo, que um jovem branco de tranças tem significado completamente diferente de um jovem negro de tranças. A discussão envolveu ainda o uso de turbantes, relações interpessoais, o discurso do outro e a luta da mulher preta por reconhecimento e respeito na sociedade brasileira”, conta Tania.

 

Sensibilidade e discurso vivo

Para a profa. Beth Brait, orientadora do trabalho, Tania conduziu a pesquisa com muita sensibilidade. “Quando ela solicitou minha orientação, já trazia uma bagagem preciosa, tanto do ponto de vista do que desejava fazer com seus conhecimentos e vivências do racismo, quanto do material a ser analisado. Como se sabe, a literatura é um lugar privilegiado para constituir e fazer ver e ouvir a complexidade humana. Tania conduziu a pesquisa fazendo-nos ouvir discursos vivos, nos quais ecoam, de diferentes maneiras, a força das vozes sociais que se confrontam e defrontam com o racismo”, afirma Beth.

Para a orientadora, a tese é uma grande contribuição para o conhecimento do racismo estrutural existente no Brasil, para as especificidades das complexas, mas incrivelmente fortes, vivências da mulher negra ao longo da vida e, também, para a área dos estudos da linguagem. “Essa é a grande contribuição social do trabalho: na singularidade de cada voz há a coletividade social e suas contradições. É um texto com rigor acadêmico, que emociona, provoca, conscientiza e faz o leitor deslocar-se”, conclui a docente.

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