Por: profa. Cibele Saad Rodrigues, Titular do Depto de Clínica e da pós-graduação da FCMS/PUC-SP, coordenadora acadêmica do Hospital Santa Lucinda, mestre e doutora pela UNIFESP
Não é à toa que as entidades médicas se preocupam com a abertura desenfreada de novas vagas em escolas médicas já estabelecidas e em novas instituições de ensino superior.
Frequentemente, recebemos notícias de uma nova escola contratando professores para serem os mentores, preceptores, tutores, ou qualquer outra nomenclatura que deveria significar educadores, pagando-os entre R$ 40,00 e R$ 60,00/hora.
No dia 16 de maio, fomos surpreendidos com a publicação, no Diário Oficial da União, de uma portaria do Ministério da Educação (343/2022) que liberou vagas nos cursos médicos no limite de até 100 novos alunos nas escolas criadas por chamamento público, no âmbito do Programa Mais Médicos.
Entre 2013 e 2022, período inferior a 10 anos, o número de escolas de medicina cresceu absurdamente, na casa de quase 70%, passando de 210 para 354.
Há quem defenda que esse aumento poderá propiciar uma melhor distribuição de profissionais ao longo do território nacional, o que é um equívoco, pois a maioria destas vagas é oferecida nas regiões Sul e Sudeste, onde já existe um número muito grande de escolas e, uma vez formado, o jovem médico prefere ficar em um grande centro.
Sem professores capacitados, mestres e doutores, com formação pedagógica e locais apropriados de ensino-aprendizagem, amanhã ou depois, você, que está lendo esta matéria, poderá estar colocando sua saúde em mãos inexperientes e mal preparadas.
Além disso, findo o curso e sem carreira nacional delimitada em lei, quem vai se mudar para os rincões mais longínquos, onde as condições de vida e de criação de filhos é extremamente dificultosa?
Não é à toa que São Paulo reúne 68 escolas e o maior número de médicos em atividade (mais que 165 mil).
Segundo nota oficial expedida pelo Conselho Federal de Medicina, a malfadada portaria possibilitaria a criação de 37 mil vagas em cursos já existentes, "milhares delas, em municípios que não oferecem condições mínimas necessárias para o pleno processo de ensino e aprendizagem". A Associação Médica Brasileira também foi contra esse processo, que mais parece um trem desgovernado.
Aqui em Sorocaba e região, estamos vivenciando um boom de alunos em unidades de saúde da atenção primária, secundária e terciária acompanhados por profissional médico, mas, frequentemente, sem qualquer preparo para ensinar.
De onde são? De universidades que não se preocupam em, primeiramente, ter onde alocar seus estudantes e, depois, abrir vagas – que chegam a custar R$ 13 mil/mês. A prática é realizada em campo de estágio fora do município-sede, porque não há equipamentos de saúde disponíveis onde houve a abertura.
Não sou contra que isso ocorra, pois é importante para a formação de um bom médico ter contato com vários tipos de assistência, em todos os níveis, em locais inclusive de difícil acesso e com populações vulneráveis que fazem parte da realidade brasileira.
Aqui, estamos tratando de outra coisa, que me assusta e me faz pensar para onde os governantes querem levar a medicina – aquela mesma, que sempre teve a confiança da sociedade, que demora seis longos anos para que se possa preparar um jovem para prestar uma prova de residência tão afuniladora como o vestibular.
Na atualidade, levam-se, no mínimo, oito ou nove anos para formar um médico clínico geral, pediatra, ginecologista e obstetra ou cirurgião. Para se tornar um especialista, após a graduação, requerem-se quatro ou mais anos de residência médica, elevando para 10 ou mais anos de formação no total, desde os bancos escolares. E não há vagas disponíveis de residência médica para todos os graduandos.
Pensem que seis anos em uma boa escola já é algo preocupante, sem a especialização posterior. Imaginem esse período em um local sem as condições mínimas de formação?
A abertura indiscriminada de vagas começou no governo Dilma Rousseff, em 2013, dentro do Programa Mais Médicos. No governo de Michel Temer, em 2018, essa boiada foi contida pela grita das entidades médicas, sob os argumentos aqui apresentados. Uma moratória de cinco anos foi aprovada.
Do início deste governo de Bolsonaro até o presente momento, o MEC aprovou 37 novos cursos de medicina, correspondentes a 4.500 vagas, sendo 34 em escolas particulares, que custam não menos de R$ 8 mil/mês. E o que é pior: abdicou de seu direito e dever de fiscalizar a qualidade, os projetos pedagógicos dos cursos, o corpo docente, os campos de estágio e a infraestrutura. É como se abríssemos uma torneira com vazão irrestrita em terreno que não comporta esse volume. O estrago virá.
No governo Dilma, já se dizia que havia grandes interesses envolvidos por parte de políticos engajados com o negócio do ensino, mas não imaginávamos que, apesar de argumentos sólidos, poderia passar uma boiada, e tudo seria uma questão de tempo, inclusive desrespeitando a moratória.
Precisamos consertar a cerca e conter a boiada: fazer um plano de carreira nacional, à semelhança do Judiciário, que estimule os jovens na procura por uma melhor distribuição de médicos por todos os cantos deste país continental, especialmente onde há maior carência; cobrar dos estudantes de escolas públicas e gratuitas que devolvam um pouco do que receberam à sociedade; garantir e ampliar vagas de residência médica em instituições qualificadas; observar rigorosamente os critérios definidos pelo MEC de manutenção do credenciamento das escolas existentes e ter o discernimento de fechar escolas que não os preencham; além de não permitir abertura de vagas nas regiões Sul e Sudeste, onde estão os maiores interesses, mas que não são os do Sistema Único de Saúde (SUS).
Ou seja, o melhor para a saúde da população seria a revogação desta portaria, o que, felizmente, acabou ocorrendo dias depois que este artigo foi escrito.
As reações contundentes e, certamente o fato de ser um ano de eleições, em que habitualmente a opinião de instituições representativas e dos eleitores importa, conteve a boiada, mas é preciso estar alerta porque este assunto parece ter sido apenas adiado e os bois parecem ávidos por burlar a contenção.