A análise de conjuntura em tempos de exceção

Artigo publicado no GGN - O Jornal de Todos os Brasis

por Francisco Fonseca | 29 / 01 / 2018 - 18 h

A conjuntura política brasileira, para além do cotidiano interminável de destruição multidirecional promovida pelo consórcio que golpeou a democracia em 12 de maio do ano passado, tem sido marcada pela projeção de cenários para 2018.

Tudo parece girar em torno das eleições, notadamente a presidencial: possíveis candidatos, pesquisas eleitorais, alianças partidárias, arcos ideológicos, entre outras variáveis consideradas “normais” na democracia institucional.

Deve-se ressaltar que em todas as eleições pós-“redemocratização” (entre 1989 e 2014) a disputa se deu em torno de aspectos oriundos da “Política”: alianças partidárias e sociais, projetos em disputa, e todo aparato pré-eleitoral de apoios em que o “fazer político” era o personagem central do enredo eleitoral. Tanto é que o debate público se deu entre instituições políticas e atores políticos: partidos, candidatos, regras eleitorais, apoios e alianças partidárias e sociais, estratégias políticas e de marketing de campanha, entre inúmeros outros aspectos referentes fundamentalmente à esfera da Política.

Pois bem, desde que os primeiros efeitos da Operação Lavajato começaram a aparecer, em 2015, coincidindo – sem que fosse coincidência – com o brutal processo de conspiração contra a presidente legitimamente eleita, Dilma Rousseff, o cenário político é inteiramente outro.

A conspiração foi, e agora se encontra consolidada, simultaneamente vinculada a atores internacionais (grandes conglomerados transnacionais apoiados pelo G-7, com EUA à frente); rentistas (nacionais e internacionais); patronato nacional com participação acionária internacional (Fiesp à frente); classes médias e superiores; think-tanks financiados pelo grande Capital (do Instituto Millenium ao MBL, entre outros); grande mídia nacional (capitaneados pela Rede Globo e pela Revista Veja); parte significativa do Poder Judiciário, por ação e/ou omissão, fortemente “gilmarizado”: STF, seções do Ministério Público, TCU, “República de Curitiba”, STJ, TRFs, entre inúmeros outros juízes, desembargadores e promotores/procuradores/desembargadores; e um grande contingente de “inocentes úteis”, constituídos em verdadeiras massas de manobra do golpe. Embora se trate de vários e distintos atores, o fato é que alguns elementos comuns catalisaram e de certa forma ainda catalisam tal pluralidade de atores/interesses: de um lado a agenda neoliberal e conservadora na economia, nos comportamentos e na política, o que envolve a política internacional, e de outro lado o modelo de desenvolvimento econômico precarizador e pró-Capital em termos sociais e trabalhistas. Como elemento transversal aos dois eixos encontra-se a tentativa de aniquilar agendas, ideias, compromissos históricos, estéticas, partidos e políticos à esquerda no espectro ideológico por meio de sua criminalização e estigma. Tal aniquilação se expressa em diversas dimensões: da vida institucional ao cotidiano.

Pois bem, não apenas esses atores vinculados ao golpe de Estado continuam operando livremente como permanecem conspirando vigorosamente, reitere-se: contra os valores e instituições democráticos e contra a esquerda (ideias, estética e personagens).

Há, portanto, a conjugação entre fatores conjunturais – o protagonismo hegemônico dos atores golpeadores da democracia – e estruturais, tal como, entre outros, a partidarização do Poder Judiciário, uma vez que tal processo vem se consolidado há tempos, encontrando seu ponto de culminância em 2014, isto é, a partir da quarta vitória eleitoral do PT.

Esse conjunto de fatores, aliado à não reação “à altura dos acontecimentos” pelo amplo espectro do centro “civilizado e garantista” e das diversas matizes de esquerda, torna a análise da conjuntura e da projeção de cenários de curto e médios prazos algo vigorosamente “anormal”.

Em outras palavras, houve alterações nas “placas tectônicas” da política, da economia, da ética pública, da chamada esfera pública, das classes sociais, dos direitos sociais e trabalhistas, do modelo de desenvolvimento, da política internacional e das instituições. Nada mais é como era – com todas as suas imperfeições e contradições – até outubro de 2014. Esses três anos decorridos se apresentam como implosão artificial do Governo legítimo de Dilma Rousseff e como divisor de águas representado pela ascensão clepto/plutocrata ao poder federal pelo consórcio partidário PMDB/PSDB/DEM e assemelhados, por sua vez apoiados por grupos como a grande mídia e think tanks, e sustentáculo do grande capital nacional/internacional: produtivo e rentista.

Ora, a conjugação das dimensões conjunturais e estruturais aponta fortemente para a anormalidade política, também denominada “Estado de Exceção”. Tal condição de excepcionalidade – que pode durar meses, anos ou décadas – implica desde a partidarização, seletividade, perseguição de adversários e abusos profundos do Poder Judiciário, até o amplo leque de atos ilegais e ilegítimos nos três Poderes e nas autoridades que estão no “nível da rua”, isto é, operacionais nas mais distintas áreas: isto é, o promotor de uma vara local do Ministério Público, o juiz de primeira instância, o policial militar do bairro, o delegado, os burocratas, o subprefeito etc. Tudo isso, como se sabe, está ocorrendo fartamente no Brasil desde o desfecho do golpe.

O conjunto de questões até aqui levantadas sugere fortemente a inexistência dos elementos balizadores do Estado de Direito Democrático – cuja formalidade apenas oculta o autoritarismo vigente –, mesmo que se leve em consideração posições minimalistas do ponto de vista conceitual.

Isso tudo significa que a análise da conjuntura e a projeção de cenários de curto e médio alcance necessitam de outras gramáticas políticas e de outros instrumentos conceituais analíticos, que não os tradicionais. Em outras palavras, a condição de Estado de Exceção exige capacidade de análise para além das formalidades institucionais e legais.

Concretamente, há perguntas que sequer têm sido feitas sobre o respeito às “regras do jogo” (em sentido lato), o papel instabilizador das instituições e as restrições à “autonomia do fazer político”, por exemplo, uma vez que, em meio ao desenrolar do golpe de Estado as regras democráticas estatuídas em leis são meras formalidades a serem alteradas a depender das correlações de força. As instituições, sobretudo do Poder Judiciário, ao se politizarem de maneira vigorosa atuam de forma parecida a partidos políticos, isto é, se “partidarizam” tanto no sentido estrito, o que representa contradição nos termos, como no sentido de gramsciano de dirigirem grupos sociais e prepararem a “narrativa oficial” dos acontecimentos, assim como interferirem nas disputas entre os grupos sociais. Numa palavra, tais instituições “fazem política”, sem voto, sem legitimidade e ao arrepio da Constituição e do pacto democrático: são “antipoliárquicas” por natureza. A ação política dos “profissionais” da política e dos movimentos sociais e grupos de interesse (nesse caso, a depender do interesse) passa a ser derivada de poderes destituídos de votos/legitimidade (Judiciário, Grande Mídia, Grande Capital). Mais ainda, nesse momento em que, no plano federal, o Executivo fora golpeado e o Legislativo marcado pela “eleição do dinheiro”, o tripé dos poderes se fecha tornando o ambiente institucional altamente fluido e sobretudo instável.

Como o Poder Judiciário é perene, não dependente do voto, não há nenhuma certeza sobre se as eleições de 2018 ocorrerão e, caso ocorram, sob quais regras “reais” serão disputadas. Muito além do possível impedimento do ex-presidente Lula, cujo julgamento é, do começo ao fim, síntese da partidarização autoritária do Poder Judiciário e, portanto, do Estado de Exceção ao qual estamos vivenciando, toda e qualquer regra poderá ser alterada e/ou interpretada. A referida “gilmarização” responde justamente por essa corrosão institucional que, combinada com o “parlamentarismo clepto/plutocrata” vigente após o golpe de 2016, torna qualquer projeção de cenários peça de ficção.

O fato objetivo é que, sob a perspectiva da História, golpes de Estado não são desferidos com vistas a devolverem o poder aos que foram derrubados e criminalizados, assim como temporalmente necessitam “finalizar o serviço”, isto é, não apenas prender/demonizar os principais inimigos e inviabilizá-los politicamente, mas também promover a aniquilação de seus ideais, personagens, estéticas e apoios em termos estruturais.

Não bastassem todos esses aspectos serem, per se, complexos, há ainda outros: setores religiosos influentes tanto na política institucional quanto no cotidiano de milhões de cidadãos, notadamente vinculadas aos evangélicos; entidades político/ideológicas de militância desestabilizadora, que lembram o Ipes/Ibad –, tais como o MBL, Escola sem partido, Instituto Millenium e tantas outras.

Há, contudo, outra cepa de instituição, cujo papel e poder necessita ser melhor compreendido nesse momento histórico: as Forças Armadas. Claro está que seus membros ativos estão paulatinamente retornando à cena política, cujos desfechos podem ser diversos. Apoios à sua reinserção, embora seus apoios ainda sejam pequenos, é difícil revertê-la: seja pela via eleitoral, seja pela do golpe clássico, seja ainda por sua participação em forma de chantagem ou imposição de restrições.

Ora, todos esses elementos sugerem que a análise da conjuntura necessita levar em conta não apenas o jogo eleitoral “normal” e sim o fato inconteste de que o consórcio golpista está no poder e dele não abrirá mão. Seus intentos têm sido exitosos (retirada da presidente eleita, vitória nas eleições municipais, criminalização de uma parte específica de políticos, partidos e candidatos, radical modificação na política econômica, no modelo de desenvolvimento e nas relações internacionais, desestruturação dos direitos sociais e trabalhistas, alterações profundas nas mais diversas políticas públicas etc), mas são ainda frágeis. Afinal, grande parte dessa destruição poderá ser revertida por um novo – e legítimo – governo progressista. Daí que, para haver eleições, o espectro do centro à esquerda precisa ser removido da vida política brasileira, por meios que ainda não se sabe quais, embora o Poder Judiciário aponte para a direção “soft” e os militares para a correspondente “hard”. Tudo isso em consonância com a grande mídia e setores articulados das classes médias superiores e do grande capital.

Portanto, sem se levar em consideração o papel, o poder, as correlações de força e o potencial desestabilizador de personagens, instituições, grupos sociais, elites econômicas e interesses internacionais que, em consórcio, golpearam a democracia, o que implica condição de excepcionalidade, qualquer análise de conjuntura e de projeção de cenários está fadada ao exercício ficcional e ilusório.

Assim, antes de se discutir o cenário eleitoral, alianças, programas, marketing político e outras questões “normais da política”, há de se observar minuciosamente os lances dos grupos sociais, das instituições, dos grandes grupos econômicos e da mídia, uma vez que não entregarão “de graça” o que conquistaram com muito dinheiro e conspiração. Como, além do mais, a agenda econômico/social do golpe não tem votos, a possibilidade de “eleições limpas” (no sentido de respeito às regras do jogo) parece impossível.

Logo, talvez a grande questão seja compreender qual(ais) carta(s) na manga tem o consórcio golpista – com todas as suas contradições – para aniquilar de vez seus adversários e impor sua agenda conservadora/reacionária. E isso no curto prazo até outubro de 2018, que por enquanto ainda é o balizador político. A questão é saber ser assim o será, pois, como nos ensinou Maquiavel: “para mudar a realidade há de sermos realistas”!

 
PARA PESQUISAR, DIGITE ABAIXO E TECLE ENTER.