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Rafael de Paula Aguiar Araújo é professor do Departamento de Política e pesquisador do Núcleo de Estudos e Arte Mídia e Política da PUC-SP.
Tenho pensado um bocado sobre a forma como temos construído nossos projetos de vida e escolhido nossas ações. Uma série de ideias e algumas situações vividas recentemente me levaram a pensar essas coisas que gostaria de compartilhar aqui. Sempre tenho comigo que a rede social possa servir para levar uma nova perspectiva a alguém, quem sabe essas palavras não disparem reflexões?
Na semana passada, durante uma aula, conversávamos sobre dois conceitos de Max Weber, a ética da responsabilidade, que aponta para ações coletivistas, e a ética da convicção, que aponta para ações individualistas. E falávamos da forma como o universo tecnológico ampliou nosso isolamento. Ao mesmo tempo em que fiquei ruminando essas ideias, dando forma à relação que guardam entre si, olhava para os absurdos que estamos presenciando a nossa volta. A cada dia vemos exemplos de intolerância, que resultam de posicionamentos austeros, convictos. Será que esse movimento tem a ver apenas com o despreparo político, ou com enfrentamentos ideológicos, ou terá a ver com escolhas pessoais, que se voltam ao miúdo do dia a dia, aos nossos projetos e vontades? Eu entendo que é muito importante tentarmos compreender como nossas ações, por inofensivas que pareçam, desencadeiam ações nos outros, de tal forma que da mesma maneira que um gesto de carinho resulta na felicidade de alguém, nossas atitudes contribuem, voluntária ou involuntariamente, para situações de injustiça. Aqui me refiro à desigualdade racial, de gênero, de classe e tantas outras assimetrias sociais que fingimos não nos dizer respeito.
Quando menciono o universo tecnológico não estou falando apenas da presença das máquinas, não se trata disso. É a produção de uma subjetividade nova, uma maneira de estar no mundo que conspira para o isolamento e para a velocidade, dentre outras coisas. Não temos mais tempo para depurar o impacto dessa aceleração. Tudo é feito para que não tenhamos disposição para pensar nessa nova realidade. A aceleração a que nos submetemos resulta em uma série de impactos, mas um essencial é a forma como ela nos impele ao individualismo.
Na verdade, com esse pensamento martelando minha cabeça, e vendo a intolerância das pessoas nas ruas e nas redes, me ocorreu que temos praticado uma imensa inversão de valores. Saímos de peito estufado enaltecendo o amor próprio. A importância de nos amarmos mais do que a qualquer outra pessoa. No trabalho, somos convidados a dar glória ao self made man, ao empreendedorismo de si. No debate político, somos prisioneiros de nossas opiniões, temos uma enorme dificuldade de aceitar uma ideia diferente a ponto de sequer arriscarmos pesquisá-la. Temos as verdades e estamos dispostos a defendê-las até a segunda página. A mesma dificuldade que temos de aceitar o outro, em suas diferenças culturais e étnicas, temos em aceitar suas ideias. Assim jamais construiremos consensos verdadeiros.
Na verdade, um projeto civilizatório não pode se sustentar com indivíduos. O que nos faz humanos é a relação que construímos com o outro. A política não nasce conosco, ela nasce entre nós. Quando um valor individual é colocado acima do coletivo, corremos o risco da intolerância e do autoritarismo. Basta dar uma olhada nas opiniões que circulam por aí, a visão que tem sido construída sobre os tantos fatos absurdos que temos vivido recentemente, para se ter a percepção de que estamos no caminho errado. Fizemos apostas erradas.
A condição humana está na relação com o outro necessariamente. Não há como escapar disso. Em todas as situações em que esse dado é desprezado o que temos é a ideologia operando silenciosamente, construindo valores mancos que nos fazem ser individualistas.
Não estou dizendo que não devemos ter amor próprio e cuidar de nós mesmos. O que estou dizendo é que se a essência do ser humano edifica-se na relação com o outro, não faz sentido que exista um amor próprio que ignore o outro.
Num mundo em que tudo conspira para que sejamos individualistas, para que tenhamos nossas metas pessoais e as persigamos, temos vergonha de precisar de ajuda e dificuldade de reconhecer a importância que o outro tem para nossa existência.
É irônico que a experiência de vida nos revele isso. Os mais velhos têm uma sabedoria sofrida, aprendida na carne, que eu mesmo só conheço aos pedaços ou através dos simulacros que os livros oferecem. Mas, talvez, a grande sabedoria que possamos tirar da vida seja compreender a importância de viver em função do outro. Ter alguém para cuidar e poder conhecer-se a cada vez, a cada movimento realizado, e ver no outro um espelho em que nos enxergamos. Não acho que é uma experiência que se aprende através das fórmulas dos terapeutas, não é algo que se aprende com conselhos ou lendo textões na internet. É um saber que se faz na intersecção do agir com o pensar. Implica o esforço de olharmos para nós mesmos e aceitarmos nossos limites com o parâmetro que os outros nos oferecem. É uma experiência que se aprende, por exemplo, com um filho. Mas também com a amizade ou um amor sincero a alguém. Tomar a vida do outro como parte da sua e cuidar. Ao cuidar do outro, cuidamos de nós mesmos.
Esse cuidado aprendemos em nossas relações, mas de uma forma ou de outra essa aprendizagem, ou a ausência dela, também se mostra quando nos voltamos a ações coletivas e mais amplas. Se a palavra cultura vem de cuidado (colere), não será possível afirmar uma cultura individualista, ela nos faria objetos de um engenhoso sistema que o mundo do trabalho construiu. Ele nos percorre as veias e penetra nossa percepção a ponto de naturalizá-lo. Não há dignidade no trabalho de exploração, muito menos em tudo o que se constrói em torno desse universo. A moda, o consumo, o lazer e a maior parte de nossos desejos são distrações de nós mesmos, mas há uma dificuldade imensa em nos retirar de um sistema tão totalitário, que é alimentado todos os dias pelos jornais, novelas e filmes. E, então, afirmar que a essência da existência humana deva estar na relação que cultivamos com o outro soa como algo romântico.
É importante que possamos viver uma ética de responsabilidade, ponderando as consequências de nossas ações para os outros, e não uma ética de convicção, quando nos conformamos em viver uma máxima qualquer. Como é possível que haja uma cartilha pronta para a vida, com a lista de experiências pelas quais devemos passar, se os sentidos devem ser construídos em conjunto?
Agir em nome de uma convicção é, de alguma forma, correr o risco de ser individualista. Simplesmente porque não há uma ação que não seja movimento e que não exerça influência no outro. Não sentir em nós a influência do outro é também uma maneira de recusarmos nossa humanidade. E para não assumirmos essa nossa limitação, entoamos convicções. De onde surgiram? Se foi da experiência, ótimo. Mas a experiência está cada vez mais rara, vivemos o mundo pela mediação da tela, pelas frases feitas e através de valores desvalorados.
Não aceitar que nossa vida deva ser em função do outro é viver em uma zona fronteiriça. Nesse limite, vivenciamos um problema que às vezes se nos mostra na forma da tristeza e da depressão, às vezes se esconde na forma da alienação. A rigor, trata-se de abrir mão da experiência gratificante do cuidado, do ser dois em um. Acho que o humano é isso. Demora a perceber, mas a verdade é que o universo simbólico que nos faz humanos é sempre alimentado pelo outro. Por isso é triste quando abrimos mão do outro pela máxima do amor próprio. Não porque não devemos nos amar, mas porque não percebemos que sem o outro nunca nos amaremos verdadeiramente.
Acho que pensar em nossas experiências pessoais pode dar materialidade a essa sensação. É um exercício importante que, me parece, devemos fazer sempre. Eu tenho pensado muito nisso ultimamente. O próximo passo é perceber que ao falarmos disso estamos também falando da política e da forma como organizamos nossas cidades, nossas relações sociais e nossas instituições. Eu acho que os horrores que temos vivido recentemente, políticas desastrosas que aviltam direitos, gestos de ódio e intolerância, discursos carentes de pensamento, resultam de uma incapacidade de agir pela qual optamos. Nossa incapacidade de compreender o absurdo e de sentir a náusea nasce desse treino constante de olharmos para nós mesmos sem conseguir sentir em nós o papel exercido todos os dias pelo outro. E esse sentimento não é passivo. Não é algo que devemos aguardar sentir. Ele deve partir de nossa consciência e ser construído ativamente, sem preguiça, avaliando os benefícios de sermos humildes no reconhecimento de nossas carências.
Ao final da escritura desse texto me lembrei de um livro do Richard Sennett que gosto muito: Carne e Pedra. E lembrei-me de um trecho que transcrevo aqui: "Escamotear os problemas enfrentados pelos cidadãos de uma cidade multicultural revela um empecilho moral de inspirar sentimentos calorosos e espontâneos ao Outro. A simpatia corresponde ao entendimento de que as aflições exigem um lugar em que possam ser reconhecidas e onde suas origens transcendentes sejam visíveis. O sofrimento físico possui uma trajetória na experiência humana. Ele desorienta e torna o ser incompleto, derrota o desejo de arraigamento; aceitando-o, estamos prontos a assumir um corpo cívico, sensível às dores alheias, presentes, junto às nossas, na rua, finalmente suportáveis - mesmo que a diversidade do mundo dificulte explicações mútuas sobre quem somos e o que sentimos (...)".
Quando nos metemos a ler esses autores e a buscar compreender a sociedade e o que é a condição humana, inevitavelmente nos vemos nessa cilada. É libertador e angustiante ao mesmo tempo. Sennett nos diz a partir da experiência com a metrópole, e com todo aquele universo tecnológico a que me referi no início, que o sofrimento físico possui uma trajetória na experiência humana. E é passando por essa experiência do sofrimento que podemos abrir os olhos e compreender o outro como parte do que somos. Isso até pode resultar em uma sincera devoção fraterna, tão importante em uma sociedade desigual como a que construímos. Mas me parece importante, antes de qualquer gesto, que possamos compreender que não é possível cuidar de si sem o cuidado com o outro. É nesse entregar-se que reside nossa humanidade e é a partir dela que podemos concretizar nosso civismo e frear o individualismo.