Entre tantas figuras, Jair Bolsonaro foi a voz eleita pelo movimento “pós-2013” como a que melhor representaria suas angústias com as mazelas morais e econômicas do país. Diversas análises supérfluas foram feitas, rotulando seus eleitores de “fascistas”, “golpistas”, ou frutos de uma parcela conservadora e atrasada que saiu das masmorras nos últimos anos. Seja como for, o ex-presidente liderou uma das maiores mobilizações de massa desde a redemocratização brasileira e mesmo após seu fracasso em se reeleger, não há indícios de que o movimento se esfriará. Movimento este que não é particularidade brasileira: nacionais-populistas têm conquistado multidões ao redor do globo, seja Giorgia Meloni, na Itália, Viktor Orbán, na Hungria, ou o próprio Trump, que simbolizou a total reconfiguração do Partido Republicano nos Estados Unidos.
A psicologia moral, campo cada vez mais renomado entre acadêmicos, ilumina o debate do porquê os discursos “conservadores” de Bolsonaro, e outros, têm tido tanto impacto na população brasileira.
Essa disciplina analisa a origem e transformação de nossos julgamentos morais no decorrer da evolução da espécie humana em resposta aos desafios adaptativos que sofremos ao longo dos séculos. E suas descobertas são muito esclarecedoras para o cenário político atual vivido no Brasil – e no mundo – ao trazer a essência da psique humana para o debate.
Diversas análises concluíram que os conservadores, com foco nos Republicanos, conseguem tocar diferentes “Alicerces Morais” em seus discursos e simbolismos. Os alicerces morais, segundo Jonathan Haidt , compõem uma gama de valores comuns que evoluíram ao longo dos anos entre nossa espécie. Se solidificaram, principalmente, a fim de reprimir “parasitas sociais”, aqueles sujeitos que atrapalham a vivência em sociedade. Como somos seres ultrassociais extremamente bem-sucedidos, o ser humano passou por uma auto-domesticação, como definem os historiadores evolutivos, punindo assassinos, ladrões, traidores e delinquentes. Processo este em que a seleção resulta das escolhas feitas pelos membros da própria espécie.
Assim, nossa evolução pré-configurou nosso cérebro para valorizar ou reprimir ações que acionem nosso “sensor moral” relacionado a: Cuidado/Dano; Justiça/Trapaça; Lealdade/Traição; Autoridade/Subversão e Pureza/Degradação.
A título de compreensão, o alicerce do Cuidado/Dano evoluiu para atendermos ao desafio adaptativo de cuidar de crianças vulneráveis – principalmente filhos e parentes; assim como o da Lealdade/Traição evoluiu para superar as adversidades na formação de coalizões; e Justiça/Trapaça para melhor identificarmos indícios de egoísmo ou altruísmo em momentos cooperativos, e por aí vai. Todos já sorriram instantaneamente ao ver um bebê brincando ou perderam a admiração por um conhecido por ter sido um traíra com os amigos, assim como já perderam o respeito naquele colega de trabalho que trapaceia para se beneficiar. São sentimentos universais.
Assim, políticos tentam acionar nossos alicerces morais a todo momento – mesmo que nem saibam o que isto quer dizer – e, no caso, ser taxado como infiel ou traidor da pátria pode ser o fim da linha. Em relação ao cenário nacional, a mensagem de Jair Bolsonaro e Luiz Inácio Lula da Silva diferem muito em relação a quais, e em que intensidade, alicerces morais acionam no “paladar moral” dos ouvintes.
Por um lado, a campanha de Lula foca nos alicerces do Cuidado/Dano e Justiça/Trapaça. A desigualdade e o foco em políticas públicas assistencialistas são o principal apelo do líder da esquerda. As elites econômicas, e sua renda desproporcional, são postas como trapaceiras e protagonistas ativas para manter a injustiça no cenário político brasileiro. “A gente tem que ter uma casa (...) com o mínimo de conforto para nossos filhos”, bravejou num comício em Taboão da Serra, em 2022. Basta também reparar no local escolhido pelo atual presidente para seu primeiro discurso oficial de campanha no ano passado: em frente à fábrica da Volkswagen, em São Bernardo do Campo, seu berço político. Como de costume, ressaltou sua antiga luta sindicalista contra grandes corporações estrangeiras de automóveis, que operam com desdém sob as custas do povo brasileiro, e, então, se personifica como protagonista da luta operária. Vale ressaltar que o apelo contrai peso distinto dentro do cenário socioeconômico brasileiro, em que, no ano de 2021, os 50% mais pobres possuem apenas 0,4% da riqueza brasileira.
A mensagem bolsonarista, em contraste, aciona múltiplos receptores morais da população brasileira. Com seu populismo estético à lá Jânio Quadros, Bolsonaro preza, pelo menos em discurso, pelo respeito às autoridades, como a figura de Deus e o amor à pátria, estrategicamente sintetizados em seu slogan: “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos” (Autoridade/Subversão; Lealdade/Traição).
Assim como adota uma abordagem drasticamente contrastante à da esquerda ao comentar sobre políticas de segurança pública: criminosos – com foco em transgressores do Código Penal –, não são vítimas da sociedade desigual, mas, sim, “vagabundos”, trapaceiros (Justiça/Trapaça) que cometem atrocidades (Cuidado/Dano) à “população de bem” (Pureza/Degradação).
No caso, Bolsonaro quase que detém o monopólio moral de questões relacionadas à proteção da família; luta contra a corrupção; lealdade à pátria; respeito às autoridades policiais e, pode-se dizer, até sobre a religião católica e, principalmente, evangélica. Numa sociedade majoritariamente conservadora em relação aos costumes, as questões citadas detêm forte apelo emocional que guiam o senso moral da população de maneira estrondosa. É frequente vídeos de seus apoiadores vociferando energicamente essas bandeiras em tom de urgência, como se estivessem às vias de serem exterminadas pela mídia tradicional, pelos banqueiros, ou pela elite intelectual que quer inserir o “Kit Gay” nas escolas.
Neste cenário, as mensagens contra corrupção e contra elites corruptas têm enorme ressonância justamente por causar a sensação de que estão sendo “deixando para trás” (Justiça/Trapaça). Sentimento este chamado também de “privação seletiva”, sendo elencado como um dos principais fatores para a ascensão na última década dos nacional-populistas nas democracias liberais do Ocidente, dado ao aumento da desigualdade pós-década de 80. A força dessa bandeira reside na intrínseca natureza humana de estar mais disposta a punir trapaceiros do que realmente buscar igualdade, segundo clássico experimento econômico Fehr e Gächter.
A dimensão do apelo das bandeiras defendidas por Bolsonaro torna-se cristalina pela adoção da bandeira – literalmente - brasileira em seus protestos. Em relação à apropriação de bandeiras nacionais, os conservadores de direita são especialistas. Ao vangloriar supostas glórias do passado, enaltecer a população tradicional ou reforçar o protecionismo socioeconômico, a bandeira nacional é associada a esses movimentos, seja no protesto contra a nova constituição chilena, na eleição de Ron DeSantis na Flórida ou no apoio ao Brexit no Reino Unido.
Porém, mesmo com tantos apelos, Bolsonaro conseguiu ser o primeiro presidente da redemocratização brasileira a perder uma reeleição. O efeito da sua mensagem, todavia, é refletido nos resultados da eleição passada: seu partido (PL) elegeu 99 deputados federais e 8 senadores, sem contar a vitória avassaladora de Tarcísio no forte Estado de São Paulo. Agora, o seu fracasso pessoal tem um protagonista, entre tantos coadjuvantes: o Coronavírus.
A pandemia acarretou peso distinto ao alicerce do Cuidado/Dano em comparação aos demais. Claro, o local e as circunstâncias demandam mais ou menos alguns alicerces. Na índia, por exemplo, onde prevalece uma cultura sociocêntrica – em que as necessidades de grupos e instituições estão em primeiro lugar, subsumindo as necessidades dos indivíduos –, o alicerce da Autoridade/Subversão contrai peso maior. No caso em tela, as mazelas da maior pandemia do século ressaltaram os apreços por altruísmo e cuidado, pela notória empatia aumentada por perda de familiares ou conhecidos. Bolsonaro, com sua drástica e insensível condução da pandemia, chegou até a ser taxado de “genocida” pela oposição, o que lhe custou o sonho da reeleição.
Outro alicerce também foi um agente importante na conscientização popular. Dada as particularidades da pandemia, o alicerce da Pureza/Degradação ganhou notoriedade ímpar na hora de avaliar o próximo presidente. Ainda não explicado neste artigo, esse alicerce evoluiu para nos prevenir de infecções ou doenças, sendo um “sistema imunológico comportamental”, termo cunhado pelo psicólogo Mark Schaller, em que um conjunto de módulos cognitivos desencadeados por sinais de doença ou contaminação por outras pessoas nos fazem querer se afastar delas. Seguindo a mesma lógica, nós também prezamos por manter indivíduos, objetos ou simbolismos “puros” de infiéis, depravações, heresias ou maus tratos – como, por exemplo, a obsessão da castidade pelos católicos: “Porque esta é a vontade de Deus, a vossa santificação; que vos abstenhais da fornicação; que cada um de vós saiba possuir o seu vaso em santificação e honra”, declara emblemático versículo.
Os incentivos ao fim do isolamento, consequentemente, e as falas do presidente certamente acionaram o alicerce de Degradação da população brasileira – como quando imitou um infectado se sufocando ou alegou que o brasileiro médio entra em um esgoto e nada acontece com ele, pois, segundo o ex-presidente, está acostumado.
Entre todos os alicerces, porém, há aquele que a estratégia bolsonarista dominou por completo: o da Liberdade/Opressão. Alicerce este em que seus gatilhos “incluem quase tudo o que é percebido como uma imposição de restrições ilegítimas à liberdade de alguém” (HAIDT, 2020, p. 187), inclusive do governo, da mídia, de seus pais ou colegas de trabalho. Já muito sentido no coração dos apoiadores Marxistas ao perceberem o mundo capitalista como algo predatório, dotado de acumulações desproporcionais de riqueza; assim como, por um ângulo radicalmente oposto, nos Republicanos/libertários que enxergam o Estado norte-americano como opressivo pela alta carga de impostos e regulações excessivas ao mercado.
A defesa pela “liberdade”, assim, é ecoada em tom de urgência por estar, supostamente, a caminho do fim. Diversos alvos foram bem construídos na narrativa bolsonarista, ativando os gatilhos de seus seguidores: seja a ditadura do Judiciário, pela forma como limitam a liberdade de expressão dos seus seguidores, assim como impediram o expresidente de realizar o seu trabalho; seja pelas universidades e uma elite intelectual esquerdista que quer impor sua agenda progressista – a temida “inquisição” do politicamente correto; seja pela iminência de o país se tornar uma Venezuela, exemplo de ditadura esquerdista fracassada na América Latina. Não há, portanto, nenhum outro candidato político aos pés de Jair Messias Bolsonaro para acionar esse alicerce moral. No cenário brasileiro atual, é a construção de narrativa estratégica para inflamar seus apoiadores – quem não se lembra do tweet em que Bolsonaro se colocava como um leão sendo rodeado por hienas, na figura do STF, mídia, etc.?
Assim, acionar positiva ou negativamente os sensores morais pode ser determinante. Apoiadores moderados, seja do lado que for, muitas vezes não resistem a esses estímulos morais, dado que “(...) é um tipo de processo automático e rápido, mais parecido com os julgamentos que os animais fazem ao perceberem o mundo, sentindose atraídos, ou repelidos por determinadas coisas.”, segundo Haidt (2020, p. 65). Ironicamente, Bolsonaro tanto ganhou como perdeu eleitores dado o alicerce da Pureza/Degradação, sendo enaltecido por prezar pelas tradições cristãs e pela “família brasileira”, e trucidado por incitar a contaminação.
Luiz Inácio Lula da Silva, em contrapartida, aproveitou o contexto para se situar como a antítese do ex-presidente. De maneira recorrente se referia a Bolsonaro como “genocida”, além de enaltecer a ciência e o papel do SUS no combate à pandemia e se empenhou em se comunicar de maneira empática e solícita aos falecidos e seus parentes. Era o contraste perfeito.
A importância de todo esse estudo é evidenciar aos políticos da centro-direita à esquerda que não é necessário alterar suas propostas ou ideologias. Apenas devem acrescentar elementos essenciais da moral humana em suas bandeiras. A campanha de Ciro Gomes, por exemplo, mesmo tendo uma das piores estratégias eleitorais da história política brasileira, foi cirúrgica ao tratar o ex-presidente como “Traidor”, pela condução da pandemia, que apunhalou pelas costas o povo brasileiro ao promover a contaminação e negligenciar a importância da vacinação no país. A história da evolução da sociedade muito se dá pelas narrativas criadas para fortalecer o laço entre desconhecidos. Portanto, é crucial a compreensão de que a moralidade está no cerne das lutas por narrativas e, assim, grande parte do sucesso da direita nacional-populista pós-moderna se dá por ser mais hábil em acionar múltiplos alicerces morais dos seus respectivos eleitores.
Daqui pra frente, portanto, é preciso recuperar algumas bandeiras – até literalmente – para equilibrar a batalha moral no ringue da política brasileira. Agora, após o fim da pandemia e a transformação da abordagem política pós Bolsonaro, redatores e estrategistas políticos de esquerda e centro-direita vão ser obrigados a “se virar nos 30” para conquistarem votos.
Referências bibliográficas
BOEHM, Christopher. Hierarchy in the Forest. The Evolution of Egalitarian Behavior: Harvard University
Press. 1999.
EATWELL, Roger; GOODWIN, Matthew. Nacional-populismo: A revolta contra a democracia liberal. São Paulo: Record, 2020.
FEHR, Ernst; GÄCHTER, Simon. Altruistic punishment in humans, Nature 415, 137–140, 2002.
HAIDT, Jonathan. A Mente Moralista: por que pessoas boas são segregadas por política e religião. Rio de Janeiro: Alta Books, 2020.
SCHALLER, Mark. The behavioural immune system and the psychology of human sociality. PubMed Central: Journal List, 2011.
WRANGHAM, Richard. The Goodness Paradox: The Strange Relationship Between Virtue and Violence in Human Evolution. Pantheon: New York, 2019.
Artigo desenvolvido por Guilherme S. B. Batista, aluno do 8º semestre do Direito e ex-integrante do Laboratório de Pesquisa da PUC-SP em Comportamento Político.