Artigo: "Festa de São João, o Batista: reflexão, história, cultura e arte"

Artigo do prof. Fernando Altemeyer Junior, assistente doutor da PUC-SP

por Redação | 24/06/2024

João, o batista.  Em latim: Ioannes Baptista. Italiano: Giovanni Battista. Espanhol: Juan, el Bautista. Inglês: John, the Baptist. Alemão: Johannes, der Taufer. Grego: Ιωάννης ο Βαπτιστής. Russo: Иоанн Креститель Hebraico: יוחנן המטביל.  

Profeta e mártir. Festa em 24 de junho – nascimento em Aim Karim por volta do ano 7 antes da era comum, cidade distante seis quilômetros do centro de Jerusalem, filho do sacerdote rural Zacarias e de Isabel, nos exatos seis meses antes do nascimento de Jesus, o Nazareno. O que guarda a tradição cristã sobre este João, o precursor do Messias esperado? Ele é reconhecido pelos cristãos nos Santos Evangelhos como o último dos profetas bíblicos. Ele anuncia a vinda iminente do Messias e o precede no caminho (Mt 11,13). Lucas narra as circunstancias de seu nascimento e circuncisão na fé hebraica. Nesse momento cerimonial é que ele recebe o nome de João. “Eles queriam chama-lo pelo nome do pai: Zacarias. Não, diz Isabel, sua mãe, ele se chamará João (Lc 1,59-60)”. Seu parto e vida se tornam um sinal prodigioso (milagre-sinal-signo) do Deus que é Pai de Jesus e sempre suscita e cuida de toda vida, mesmo de uma mulher considerada velha e estéril.

A narrativa de sua infância se resume a poucas linhas no evangelho lucano (Lc 1,80), além de alguns versículos no Protoevangelho de Tiago, texto apócrifo, que recolhe abundantes relatos dos ensinos evangélicos deste período enigmático da vida do Ungido e seus familiares e amigos. Nada sabemos com certeza de sua vida e sua juventude e suas conexões com os movimentos libertários do povo judeu no período da dominação cruel dos romanos. Vemo-lo surgir como um “batizador” (aquele que mergulha pessoas nas águas do Rio Jordão e faz emergir nova criatura), pelo ano 27 da era comum. Ele vive vida ascética e frugal, clamando pelas veredas e povoados da Palestina e Judeia que o Messias está para chegar e que é preciso preparar-se pela mudança de vida e abandono dos hábitos injustos e desonestos (Lc 3,2-6). Os futuros apóstolos de Jesus: Pedro e seu irmão André, são parte de seus discípulos antes do encontro com Jesus.

João batiza Jesus, e o reconhece como sendo o Messias. A cena é teatral e simbólica: Ele vê uma pomba descer sobre Jesus e uma voz celeste indicando que ele é o eleito: “Tu és meu Filho” – diz a voz vinda dos céus (Lc 3,21-22). O evangelista Lucas, diríamos hoje, em formato jornalístico, narra o encontro-entrevista, entre Jesus e João. Interroga enfaticamente João: Tu és aquele que vem? (Lc 7,18-23). E Jesus proclama com autoridade pessoal inédita: “Eu vos declaro, que entre os nascidos de mulher, ninguém é maior que João ! (Lc 7,24-28)”. João, o Batista, é pregador áspero, intolerante com as injustiças e asceta do deserto. Possivelmente ligado inicialmente ao grupo dos essênios – a comunidade de Qumran, ele será reconhecido como o precursor do Jesus, o Messias tão esperado.

 João é aprisionado por denunciar a união incestuosa do rei judeu Herodes Antipas com Herodiades, irmã de seu irmão. Salomé, filha de Herodes Filipe e Herodiades, abusa da fraqueza de seu tio e obtém a morte do profeta entregando sua cabeça em uma bandeja em um banquete necrófilo e assassino. A filha irá entregar a cabeça decepada de João para sua mãe Herodiades, que era a mentora do assassinato do profeta que tanto a incomodava em sua sanha e corrupção de poder e dinheiro (Mt 14,3-11, Mc 6, 17-28 e Lc 3,19-20). 
 João, o Batista ou precursor, é um dos poucos santos venerados pela Igreja onde celebramos sua festa em sua data de nascimento e não na morte. Também Jesus e a Virgem Mãe recebem essa distinção litúrgica dos fieis. Por ser aquele que batizou Jesus, inúmeros batistérios nos templos católicos o tem pintado ou em mosaicos ilustrativos. Morreu em 29 de agosto do ano 28 ou 29 da era comum. 
 Ele é patrono de muitas cidades pelo mundo: Turim, Genova e Florença, por exemplo. Em Roma, está consagrada à sua memória a Basílica de São João de Latrão.  Seus atributos e imagens sempre se exprimem por um cordeiro ferido e sangrando, um machado que corta a raiz da árvore infrutífera, vestido com pele de camelo ou lã de ovelhas.  

Representações e ícones artísticos de João, o Batista

Na época paleocristã, João Batista veste o manto dos filósofos da Antiguidade, sem atributos distintivos de sua missão. Querem reforçar seu papel de precursor do Ungido. Depois de imperador Constantino no século IV da era cristã, ele é representado como um anacoreta que vive no deserto, comendo gafanhotos e mel silvestre e vestindo uma pele de camelo. Tem aspecto abatido e sempre esquelético. Ao final da idade Média será revestido de pele de carneiro, tendo a cabeça e as patas do animal pendendo à frente de seu peito. Porta um bastão ou cajado tendo esculpido um cordeiro crucificado ou degolado. Também representado por uma bandeja de prata onde repousa sua cabeça extirpada do corpo, expressando o martírio cruento. Na rica cultura do mundo oriental bizantino, a partir do século 13, nasce um João Batista com asas. É transmutado em figura angelical como um enviado do Cristo Jesus. “Eu envio o meu mensageiro diante de ti”, escreveu o evangelista Marcos 1,2. Como mensageiro em grego se escreve anjo, a conexão foi imediata. O precursor João é como um anjo que antecipa a chegada da Mensagem viva de Deus, seu Filho amado. No Renascimento, são destacados nas pinturas os traços e silhuetas próprias de anacoretas. Exemplo desse modo de vislumbrar estão em Andrea del Sarto (1514) e na obra de Franciabigio (1519). 

Muitos são as esculturas e pinturas sobre os ciclos de vida do profeta João, sempre destacando cenas de sua história e conflitos com o poder religioso e político de seu tempo. Sempre inspirados no mosaico de textos que percorre os quatro evangelhos canônicos, os apócrifos, bem como a Legenda Aurea de Jacques de Voragine.  É magnifico o batismo no Jordão na obra de Piero della Francesca (1148-145), hoje na National Gallery, em Londres. No século 14 emergem as obras de A. Pisano, no batistério de Florença. No século 15 os afrescos de F. Lippi, no domo de Prato (1452-1464). Grunewald coloca João, o Batista de forma extemporânea, pois já fora morto um ano antes, como um redivivo aos pés da cruz, para ressaltar a divindade do Cristo crucificado (retábulo de Issenheim 1511-1517, hoje no Museu de Colmar).  

A dança da princesa judia, Salomé envolve Eros e Tanatos, mescla sexualidade e perversidade, ao obter do padrasto o compromisso de lhe ofertar a morte do profeta João. Tema abundante nas obras artísticas, exemplo temos na Catedral de Auxerre, França e nos vitrais das catedrais de Rouen e de Bourges, França. O tema de Salomé carregando a cabeça decapitada de João sobre uma bandeja foi abundante nas representações, por exemplo, o mosaico de 1350 no batistério de São Marcos, em Veneza. Também píntado por Caravaggio, 1606-1607, atualmente exposto na National Gallery, Londres.        

As festas juninas no Brasil 

Certamente com São Francisco, Santo Antônio e a Virgem Maria, ele também é um dos santos mais amados do povo nordestino. Eis João, o Batista. Alguns católicos chegam a acreditar que não há vida plena sem festa em junho. Sem participar da noite de São João, o ano estaria perdido. São João é festejado com as alegrias transbordantes revelando um deus amável e dionisíaco, materializado na farta alimentação, músicas, danças, bebidas e na marcada tendência sexual de certas comemorações populares, adivinhações para casamento, banhos coletivos pela madrugada, prognósticos de futuro, e mesmo o prenúncio da morte no curso do ano próximo. 

São João é festejado com farta alimentação à base de milho e amendoim, músicas, danças, bebidas.  O santo, segundo a tradição, adormece durante o dia que lhe é dedicado pelo povo. E não se deve acordá-lo. Assim diz o povo reverente: “Se São João soubesse quando era o seu dia, descia do céu a terra, com prazer e alegria. Minha mãe, quando é meu dia? – meu filho, já se passou! – numa festa tão bonita, minha mãe não me acordou? Acorda, João! Acorda, João! João está dormindo, não acorda, não!” (CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. Belo Horizonte: Itatiaia, 1993. p. 404). Seu nascimento coincide com a semana do solstício de inverno no Brasil. Em geral será a noite mais longa do ano. São João veio acompanhado das superstições, crendices e agouros da Península Ibérica. Os indígenas ficaram seduzidos com a alegria da festa. Fogueira, bebidas, comida, milho, vestes, bandeiras e muitas danças. Hoje com a urbanização e o crescimento pentecostal a festa sofreu crise e mutação. Esse universo rural entrou em profunda crise cultural e até mesmo política com a veloz urbanização do Brasil depois de 1970. O urbano tomou conta de todos os cenários. Muitas vezes a festa junina seria substituída por festas americanas nas escolas ou relegada ao ostracismo. Com o crescimento pentecostal até foi suprimida em muitas escolas. Alguns santos foram depostos dos altares laterais das igrejas com a secularização crescente. Paradoxalmente, os devotos de São João Batista permanecem fieis e não querem perder as raízes ancestrais de suas famílias interioranas. De alguma maneira buscam manter a alegria da festa como gratuidade, encontro e partilha dos frutos da terra. Há algo de rebeldia diante da mercantilização capitalista, o que pode ser essencial na pastoral urbana de nossos dias. A rebeldia do Batista aponta na direção contrária dos ricos e opressores. É festa popular e dos subalternos. É momento de frugalidade, simplicidade e partilha. Todos devem ficar espantados com o nome João. Ele sempre vem para incomodar a religião estabelecida e as normas que não estimulam a festa e a alegria. João mexe com as religiões estabelecidas e com aqueles que querem controlar a fala dos profetas. O Batista pede mudança de vida e de ação. Sua palavra é contundente. Até poderão suprimir festas juninas e mastros dos santos. Jamais poderão calar a rebeldia, pois se João se calar as pedras gritarão. 

Paróquias na arquidiocese de São Paulo que tem o Batista como padroeiro: 1908.10.04. P. São João Batista 010 - Belém-BL
1960.04.21. P. São João Batista 155 - Imigrantes-IP
1962.06.24. P. São João Batista 161 - Pirituba-LP
1936.07.16. P. São João Batista 035 - Vila Carrão-BL
1940.01.25. P. São João Batista 061 - Lapa-LP
1957.10.30. P. São João Batista 119 - Ipiranga-IP
1968.12.16. P. São João Batista 207 - São Mateus-BL

Dioceses católicas brasileiras que possuem São João Batista como seu patrono:
Almenara, MG
Barreiras, BA
Cametá, PA
Caratinga, MG
Montenegro, RS
Niterói, RJ
Nova Friburgo, RJ
Rio do Sul, SC
Rondonópolis-Guiratinga, MT
Santa Cruz do Sul, RS
Catedral Ucraniana em Curitiba, PR
São João da Boa Vista, SP

Novos precursores em nossos dias

Podemos verificar uma sintonia entre a figura do Batista e de Jesus, nas mortes de padre jesuíta Rutílio Grande (+1977) e dom Oscar Arnulfo Romero, assassinado no altar em 24/03/1980 mesclando o sangue de Cristo ao seu sangue.  Ambos desnudaram a idolatria do capital e do imperialismo norte-americano no pequenino El Salvador.  

Como não ver semelhança na entrega do padre João Bosco Penido Burnier substituindo no martírio a dom Pedro Casaldáliga, às margens do Rio Araguaia, pela perseguição dos latifundiários e ladrões de terra. 
Como não perceber o sinal profético do seringueiro Chico Mendes antecipando a morte martirial de irmã Dorothy Mae Stang, no coração da Amazonia crucificada. Como esquecer o exemplo de Alexandre Vannucchi Leme; Leigo de Sorocaba e estudante de Geologia assassinado nos porões da ditadura sob muita tortura em 17/03/1973, que fez sair da letargia e da cumplicidade os bispos da Igreja Catolica do Brasil, que haviam apoiado o golpe militar. Sua morte fez emergir bispos e pastores audazes e corajosos como Dom Paulo Evaristo cardeal Arns e Dom José Ivo Lorscheiter que gritaram nos púlpitos e telhados: Não te é lícito matar. A Igreja fica ao lado do povo sofredor por ver nele o Cristo Crucificado. 

Momento pascal fundamental. Deus continuará mandando outros Batistas, como precursores a nos fazer viver a mensagem do Messias que quer liberdade e justiça social. Que o Espírito de Jesus abra nossos ouvidos e corações para acolher tais profetas do Altíssimo. 
Oração a São João Batista

São João Batista, voz que clama no deserto, endireitai os caminhos do Senhor, fazei penitência, porque no meio de vós esta quem não conheceis, e do qual eu não sou digno de desatar os cordões das sandálias. Ajudai-me a fazer penitência das minhas faltas, para que eu me torne digno do perdão  daquele que vós anunciaste com estas palavras: Eis o Cordeiro de Deus, eis aquele que tira o pecado do mundo. São João Batista, rogai por nós. Amém.

Artigo do prof. Fernando Altemeyer Junior, assistente doutor da PUC-SP

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