Por Thiago Pacheco (2004)
Aos 13 anos, Antonio Carlos Malheiros descobriu a pobreza. Aconteceu subitamente, no dia em que foi fazer um trabalho escolar, na Favela do Vergueiro (hoje extinta. ficava no bairro paulistano de Vila Mariana). Quando chegou lá. encontrou uma realidade muito diferente daquela à que estava acostumado perto da casa de seus pais, no Jardim Paulistano. ou nas salas de aula do tradicional Colégio São Luiz. “De repente, eu me surpreendi com a fome. Com meninos da minha idade de pé no chão, sem dentes na boca. Eu fiquei indignado com aquilo, pensei: Tenho que estar do lado de quem está sofrendo.” Nessa idade, o hoje professor de Direito da PUC-SP e desembargador já tinha na cabeça a ideia de que pretendia, durante sua vida, fazer o bem.
Em sua mente de criança, marcada por figuras que considera extraordinárias, como Jesus Cristo e Francisco de Assis, divagava: “isso deve ser uma coisa gostosa. Como posso lazer o bem?”. Encontrou - por pouco tempo, é verdade — a solução: “Acho que vou me tomar padre. Eu os vejo sempre voltados para as outras pessoas...”.
Quando aconteceu o episódio da favela, Malheiros já morava havia um ano em um seminário da capital paulista. Ao final do colegial, porém, já percebera que a carreira religiosa não era sua vocação. Decidiu fazer faculdade na área jurídica. “Acho que tudo tem uma ligação. Porque O Direito é algo extremamente importante. A advocacia ou a magistratura, bem exercidas, também são como sacerdócios. Acabam sendo voltadas para os outros, para tentar salvar as pessoas, de uma maneira ou de outra”, explica.
Começou a trabalhar no escritório de seu irmão mais velho, já no primeiro dia de aula da graduação na USP, em 1969. Foi advogado durante 20 anos, de 74 até se tornar juiz de primeira instância, em 94. Desde 2001, é desembargador do Tribunal de Justiça (TJ) de São Paulo.
DIREITOS HUMANOS - A rotina. diz, não é fácil. Até porque. Além do expediente no TJ), Malheiros dá aulas na PUC-SP desde 96; leciona em outras três faculdades, uma delas em Jundiaí (60 Km de São Paulo); é o atual presidente da Comissão Justiça e Paz, voltada para o trabalho em Direitos Humanos; é voluntário da ONG Viva e deixe viver, que alua na área de humanização hospitalar. “Cada vez que vou fazer a conta do meu dia, matematicamente ela não fecha. Durmo quatro horas por dia e trabalho o restante. Acaba dando certo. O meu dia deve ter mais de 24 horas e eu não sei...”
No seu gabinete, é possível encontrar detalhes de todo esse trabalho. Uma estante enorme, ocupada por livros jurídicos, fotos da família — divorciado, o desembargador tem três filhos —, imagens de santos e de uma dupla que parece Dom Quixote, o idealista, e Sancho Pança, o humilde; processos, espalhados por algumas mesas; nas paredes, diplomas, uma reportagem sobre seu trabalho como voluntário e uma foto de Sebastião Salgado que mostra pés descalços, sujos e descuidados.
Essas referências se unem em um foco: o ser humano. Anos depois daquela descoberta na favela, Malheiros insiste em pensar nas outras pessoas. Muitas vezes, não é nem uma atuação militante, mas um simples cuidado. Parou de falar algumas vezes, durante a entrevista. quando achou que a tosse do repórter poderia ter sido motivada pelo cigarro que fumava, ou quando olhou o gravador para ver se estava funcionando. Sim, estava. E registrou a voz grave e forte do desembargador contando suas histórias no voluntariado.
Sua militância se faz não só no dia-a-dia do TJ, ou em suas aulas de Direitos Humanos; Malheiros é mestre na arte de arregaçar as mangas e sujar os sapatos. Desde os 13 anos, faz o trabalho in loco, na rua, nos hospitais, nas favelas... Dessa carreira, tem muitos episódios – e a maioria pode chocar alguém desavisado. Como aquele da época em que atuava no pavilhão de queimados do Hospital das Clínicas e andava pensando em desistir do voluntariado. “Era uma véspera de Natal, e eu estava lá, brincando com as crianças. E havia um menino tão queimado, mas tão queimado que não tinha rosto. Não dava para perceber o que era nariz, boca... No final da tarde, eu já estava indo embora, e aquele rapaz me puxa pelo jaleco. eu olho para ele, que diz: ‘Tio, pode não parecer, mas eu estou sorrindo’. Isso fez com que eu nunca mais pensasse em deixar de ser voluntário.”
HISTÓRIAS — O professor também realizou trabalho com moradores de rua. Encontrou pessoas que estavam ali mão apenas por pobreza, mas por desespero, alcoolismo, drogas ou problemas familiares. Ele se lembra. por exemplo. de um piloto de avião que perdeu um filho aos quatro anos de idade, o enterrou é não voltou mais para casa. De um professor húngaro que falava oito idiomas, de um outro da rede pública de ensino, de um que se dizia advogado... E das crianças. os pequenos “reis de rua”, que tinham 10, 11,12 anos, com suas mulheres da mesma idade, que afirmavam estar melhor ali que junto dos pais.
Em outra ocasião, novamente em um hospital, se recorda de jogar futebol com as crianças doentes pelo comedor e das enfermeiras gritando para parar, que eles iam quebrar tudo. Recorda do dia em que cantava com um rapaz portador de Aids morrendo no leito. cuja mãe chorava na porta e dizia que não tia entrar porque não perdoava a homossexualidade do filho, e de quando um outro moço entrou no quarto e abraçou o doente. “Naquele momento, percebi que aqueles parceiros eram uma família. Olhei para a porta, vi aquela senhora que chorava e não entrava, pensei, isso não é uma família.”
Os episódios contados pelo professor são todos muito reais. Ele os conta com uma riqueza de detalhes própria de quem usa a oralidade com a intenção de manter as memórias sempre vivas dentro de si. Talvez, para não deixá-lo esquecer da importância do que faz. “Como advogado. promotor, estudante, juiz, militante na área de Direitos humanos, professor. cidadão... É missão da gente trazer felicidade para as pessoas. Ou procurar trazer, pelo menos”, considera. É com esse pensamento que Malheiros segue fazendo a sua parte para reescrever a realidade.