Mulheres na cracolândia são tema de doutorado em Ciência da Religião

A jornalista Ana Trigo, autora da pesquisa, concedeu entrevista exclusiva ao J.PUC

por Thaís Polato | 28/08/2023
Acervo ACI

“Mulher é muito difícil”. De tanto ouvir essa frase, a pesquisadora e jornalista Ana Trigo decidiu usá-la como título de sua tese de Doutorado, defendida em 2022, no Pós em Ciência da Religião. “Acredito que ela resume bem a situação de solidão que as mulheres dependentes químicas enfrentam na busca pela recuperação”, afirma Ana.

O nome completo da tese é “Mulher é muito difícil”: O (des)amparo público e religioso das dependentes químicas na cracolândia de São Paulo e a pesquisa foi realiza com orientação da profa. Maria José Fontelas Rosado-Nunes (clique aqui para acessar o trabalho).

Em 2012, a pesquisadora foi contratada como coordenadora de comunicação da Secretaria de Desenvolvimento Social do Estado de São Paulo. Passou a ter contato com diversos grupos, muitos ligados a instituições religiosas, que atendiam dependentes químicos na cracolândia, à época concentrada na Praça Júlio Prestes e entorno. “Ter a cracolândia como campo de pesquisa esbarra em algumas dificuldades. Perceber quem são as pessoas que podem abrir portas é fundamental. No meu caso foi a aproximação dos grupos religiosos”, conta Ana.

Um ano depois, a jornalista entrou para o Mestrado na PUC-SP, também no Pós em Ciência da Religião. Já nesta ocasião, um fato chamou muito a sua atenção: os locais de atendimento, fossem dos governos estadual ou municipal, ou ainda das instituições filantrópicas, ONGs e igrejas, eram repletos de homens. “Poucas mulheres, quase sempre muito arredias e desconfiadas, se apresentavam para os serviços oferecidos, mesmo que fossem somente para gerar algum conforto, como banho, troca de roupa ou alimentação”, afirma.

Apesar das estatísticas apontarem um número maior de homens do que de mulheres na cracolândia, a diferença de público pareceu perturbadora à jornalista, que resolveu abordar o tema no Doutorado. “Foi então que percebi que essas mulheres são julgadas moralmente e não como pessoas doentes que são. Os grupos, sejam públicos ou instituição filantrópicas, fazem o atendimento com viés androcêntrico, ou seja, colocando o masculino como representação do todo. Então, como são mais julgadas e estigmatizadas, não buscam ajuda. Por isso, sofrem mais com as exclusões, com o desamparo e o desatendimento”, relata Ana.

 


 

Mulher de cabelos pretos cacheados e roupa azul, em frente a um jardimLeia, a seguir, entrevista com a pesquisadora:

JPUC – O que sua tese concluiu sobre o impacto dos serviços oferecidos para a população feminina que sofre com a dependência química na cracolândia?
Ana Trigo –
A constatação mais triste é que as mulheres dependentes químicas se sentem constrangidas ou incapazes de buscar ajuda nos serviços oferecidos, sejam eles do poder público ou de grupos voluntários. O estigma de uma mulher que está nas ruas é muito maior que o dos homens. A humilhação e a vergonha típicas impostas pela situação de rua, pioradas com a falta de coisas básicas como itens de higiene, absorventes, e até mesmo dificuldade de acesso a banheiros dão a essas mulheres a sensação de não reconhecimento como seres humanos. A falta de acesso impõe um sofrimento ainda mais grave para as mulheres, que leva à perda da autoestima e da preocupação com o autocuidado. Há também o julgamento moral: a mulher dependente química não é considerada uma doente, mas sim uma pessoa egoísta e negligente, que rejeita seu papel fundamental de mãe e cuidadora.

JPUC – Por que realizar a pesquisa no Pós em Ciência da Religião?
Ana Trigo –
Desde 2013, a política pública de atendimento à dependência química no Estado de São Paulo é definida pelo Programa Recomeço, que aposta na abstinência e no acolhimento religioso como terapia. Aliás, São Paulo foi um dos primeiros estados do País a apoiar o trabalho das comunidades terapêuticas, incluindo o atendimento na política pública de atenção aos dependentes químicos. O modelo é replicado em outros estados e hoje, as comunidades terapêuticas religiosas recebem mais financiamento público e contínuo que outras modalidades de terapia, como a redução de danos, ou outros serviços prestados pelo Centro de Apoio Psicossocial (CAPs) Álcool de Drogas. Diante desse cenário, decidi direcionar minha pesquisa a esse tipo de atendimento e meu projeto foi acolhido no Programa de Ciência da Religião, da PUC-SP.

JPUC – Por que você escolheu colocar no título de sua tese a expressão “mulher é muito difícil”?
Ana Trigo –
Nos territórios de uso de drogas, que se convencionou chamar de cracolândia, há vários grupos que tentam ajudar de alguma forma. Muitos deles são formados por igrejas e instituições religiosas cristãs (católicas e evangélicas). Mas, entre esses grupos é comum ouvir que que “é muito difícil lidar” com as mulheres dependentes químicas porque elas “são mais agressivas que os homens”, “despudoradas”, “vendem o corpo com grande facilidade” para comprar crack e, principalmente, “são muito frias” porque largaram a família e os filhos para se drogar na rua, enfim, “mulher é muito difícil”. Mesmo assim, muitos desses grupos tentam iniciar um atendimento voltado só para elas. Só que, apesar de bem-intencionados, os grupos que acompanhei não se sustentaram. Um pouco pela baixa adesão feminina. Muito pela falta de experiência das organizadoras que resultou em estranhamento e dificuldade para lidar com um público que foge dos padrões de conduta esperados para uma mulher cristã: docilidade e subserviência. E a máxima “mulher é muito difícil” sempre aparecia. A fala era usada inclusive como justificativa para a descontinuidade dos trabalhos iniciados. De tanto ouvir essa frase, decidi usá-la como título porque acredito que resume bem a situação de solidão que as mulheres dependentes químicas enfrentam na busca pela recuperação.


“A falta de profissionalização das equipes das casas pode, inclusive, gerar situações de insegurança. Por exemplo: numa crise de abstinência, ou numa briga entre acolhidos, o que os missionários fazem é tentar acalmar os ânimos dos envolvidos e orar. Mas e se não der certo?”


JPUC – Como você avalia a forma com que os programas públicos têm tratado a questão das mulheres na cracolândia?
Ana Trigo –
Muito mal. A imposição de papéis sociais às mulheres, repletos de estereótipos, afeta diretamente aquelas que são dependentes químicas e se encontram em situação de rua. Como não buscam ajuda, são subnotificadas nas pesquisas. O espalhamento da cracolândia pela cidade após ação da Prefeitura para liberação da Praça Princesa Isabel, em maio de 2021, dificulta ainda mais qualquer apuração de dados. O último Levantamento de Cenas de Uso em Capitais (LECUCA), feito pela Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas da Universidade Federal de São Paulo, divulgado em dezembro de 2022, aponta que o público médio da cracolândia é de 934 pessoas, formado por 73,8% de homens, 22,5% de mulheres e 3,73% de transgêneros. Esse número é irreal. Quem anda pela cidade se depara com pequenas cracolândias e percebe que há muito mais pessoas fazendo uso de drogas. Outro problema: os pesquisadores não foram às ruas à noite por questões de segurança. O próprio relatório da pesquisa aponta que, dependendo do horário, o público pode quase dobrar, principalmente à noite, quando pode haver maior concentração de mulheres, trans inclusive.

JPUC– Quais podem ser as consequências disso?
Ana Trigo –
A subnotificação resulta em menor número de vagas de atendimento, por exemplo. Vejamos o que está definido no edital em curso do Programa Recomeço: são 1.432 vagas em comunidades terapêuticas, sendo que apenas 200 delas oferecidas para o público feminino, número percentualmente menor do que foi apontado pelo LECUCA. Em uma sociedade em que o masculino corresponde à normalidade, quase nada aparece de forma isenta quando se fala do estigma que as mulheres experimentam por serem dependentes químicas e estarem nas ruas. Ou das exclusões perversas que as mulheres vivenciam por não ter acesso a cuidados básicos de higiene ou serviços que levem em conta as peculiaridades femininas, como albergues que permitam morar com seus filhos, por exemplo. Aliás, se for grávida e dependente química, ao dar à luz, enfrenta ainda a falta de políticas públicas para atendê-la nas maternidades e o resultado é a separação da mãe e do bebê. Elas são automaticamente consideradas inaptas para serem mães. E “no melhor” interesse da criança, maternidades públicas e judiciário optam pelo caminho mais rápido, mesmo que pesquisas apontem que após a separação dos bebês, as mulheres voltem em piores condições para as ruas.

JPUC – De que forma a religião está presente na cracolândia e, mais especificamente, para as mulheres que vivem no local?
Ana Trigo –
A presença religiosa nas cenas de uso é uma constante. Em todas as vezes que estive nos territórios sempre encontrei missionários, voluntários, religiosos católicos ou evangélicos nas redondezas ou mesmo dentro no fluxo, conversando com os dependentes químicos, oferecendo algum tipo de ajuda, ou até mesmo um abraço. É uma presença frequente, visível. O que mostra que são os grupos religiosos que conseguem entrar naquele ambiente e interagir com seu público, realizando um trabalho que mistura assistência social e evangelização. É claro que o poder público também está presente no local. É possível ver assistentes sociais e de saúde circulando pelo território, além da força policial, claro. Mas quem pisa de fato dentro da cracolândia, quem conhece os usuários pelos nomes, que os reconhece como seres humanos, são essas pessoas que fazem parte dos grupos religiosos. Na ausência de políticas públicas efetivas para os dependentes químicos é a religião, mais explicitamente o Cristianismo, quem está definindo os modelos de atendimento por meio de comunidades terapêuticas ou organizações sociais escolhidas via edital. O problema é que, por mais bem-intencionados que esses grupos possam ser, têm dificuldades de aceitar públicos que fogem do comportamento e crenças cristãs, como pessoas de outras religiões, não crentes, mulheres que se prostituem para conseguir dinheiro, comida ou drogas e a população LGBTQIA+, todos parte do enorme emaranhado que forma o público das cracolândias. Com isso, muita gente fica de fora do atendimento público, que deveria ser abrangente e inclusivo.

JPUC – Durante suas entrevistas com as mulheres acolhidas, voluntárias, missionárias e profissionais de atendimento, quais aspectos mais te chamaram atenção?
Ana Trigo –
As equipes que trabalham nas comunidades terapêuticas são normalmente missionários residentes, missionários que trabalham por turnos e voluntários. É comum também encontrar pessoas que se recuperaram pelo trabalho das instituições que se voluntariam para trabalhar, numa forma de retribuir o benefício que tiveram. Muitos não recebem salário para isso. Não existem equipes profissionais de atendimento nas áreas psicossocial e de saúde, nem mesmo nas conveniadas pelo Estado. Esse é o principal problema dessas instituições e que gera muitas críticas dos conselhos de saúde e psicologia. Mesmo assim, o modelo é aceito na política pública e recebe investimentos municipal, estadual e federal.

JPUC – Como você observou que é feito o atendimento?
Ana Trigo –
A “terapia” aplicada resume-se na oração e na leitura de textos bíblicos, na disciplina e na laborterapia. Não há permissões para saídas desacompanhadas, as correspondências são previamente lidas pelas missionárias e a vigilância é constante feita por câmeras. E em uma comunidade terapêutica feminina, o resgate da mulher também passa por muito sentimento de culpa por ela não cumprir com seu papel de mãe e cuidadora do lar. A dependência química é tratada como pecado e a cura passa pela aceitação e Jesus como salvador. A falta de profissionalização das equipes das casas pode, inclusive, gerar situações de insegurança. Por exemplo: numa crise de abstinência, ou numa briga entre acolhidos, o que os missionários fazem é tentar acalmar os ânimos dos envolvidos e orar. Mas e se não der certo? Quando há desistência dos acolhidos, os missionários se sentem fracassados por não ter passado corretamente a palavra de Deus. O que me parece mais complicado é que essa linha de atendimento só é eficiente para quem se encaixa nos modelos morais cristãos e quem é aberto ao discurso religioso da cura da dependência química pela salvação divina. Quem não se enquadra na crença binária de masculino ou feminino, fica, em geral, fora do atendimento.


“O que me parece mais importante é questionar por que o Estado, laico por definição, não apresenta propostas inclusivas, abrangentes, multidisciplinares para problemas tão complexos como os vividos nas cracolândias, limitando-se a apostar em algo que mistura um pouco de assistência social com muito de proselitismo religioso.”


JPUC – Desde o momento de iniciar a pesquisa, sua hipótese era de que as mulheres dependentes químicas são mais estigmatizadas que os homens. Por quê?
Ana Trigo –
A mistura entre o que é público (como as políticas governamentais) com o que é privado (como os ensinamentos pregados nas igrejas, por exemplo) colabora com formas de exclusão e opressão às mulheres. Por mais dedicados que esses grupos possam ser, o que pauta as ações dos grupos religiosos são noções de comportamento feminino como a docilidade e a submissão, algo muito difícil de acontecer mesmo entre mulheres que congregam em alguma igreja, que dirá num ambiente violento e de exclusão como é a cracolândia. A imagem que se faz das “mulheres das ruas” é o oposto do que se espera da natureza feminina pelo conceito pregado dentro das igrejas. Ela precisa ser controlada. E o controle passa pela maternidade: a mulher só será “querida e respeitada” quando aceitar o papel de mãe que lhe foi imposto além de aceitar a submissão de ser esposa, de ser mãe devotada e ser provedora do lar. Os homens que estão nas cracolândias também largaram suas famílias, mas nada é dito sobre isso. Mas a mulher que foge do padrão tradicional de provedora e cuidadora, que não se dedica devotamente à família, e principalmente aos filhos, é considerada “a pior de todas”, não importa se ela está doente por conta da dependência química.

JPUC – A partir de seus estudos, você poderia concluir qual/quais seriam as melhores maneiras de atender a população feminina dependente química?
Ana Trigo –
Necessitamos de uma política pública de fato, que seja abrangente, inclusiva, com ações de prevenção e com apoio na recuperação. Precisamos de equipes multidisciplinares que abordem e atendam as mulheres com suas particularidades, que ofereçam amparo maternal e albergamento junto dos filhos. No entanto, o que temos é um modelo único de atendimento, com viés androcêntrico e baseado em conceitos religiosos que podem ser muito opressores para essas mulheres. Quero ressaltar, no entanto, que acho contraproducente focar a crítica apenas nos grupos religiosos. Sempre haverá casos de sucesso a serem reportados, resultado da perseverança e fé das pessoas que passaram por essas casas. A questão é que as religiões têm suas crenças, suas formas de interpretar a Bíblia e aplicar suas percepções à vida cotidiana. E elas não mudarão isso apenas porque passaram a fazer parte das políticas públicas de saúde e assistência social por força de editais públicos. Os governos sabem disso muito bem. O que me parece mais importante é questionar por que o Estado, laico por definição, não apresenta propostas inclusivas, abrangentes, multidisciplinares para problemas tão complexos como os vividos nas cracolândias, limitando-se a apostar em algo que mistura um pouco de assistência social com muito de proselitismo religioso.

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