Natal é parto de vida e esperanças

por Redação | 22/12/2023

Meditações sobre os símbolos natalinos do Prof. Dr. Fernando Altemeyer Junior, assistente doutor da PUC-SP.

1. DEUS NASCIDO ENTRE FRALDAS, NA VILA DE BELÉM, EM NOITE DE INVERNO

Este é o mistério central do natal cristão: o parto do Deus na carne frágil carne da humanidade. Essa surpresa está escondida no meio da noite. Paradoxo gratuito diante da voracidade mercantil de nossos dias que quer que destruímos o Natal com guerras e ódios enquanto manipulamos a vida para que se torne mercadoria. A Igreja chamou a festa natalina de Festum Nativitatis Domini Nostri Jesu Christi, ou em fórmula curta, Dies Natalis Domini (Dia do nascimento de Deus). Daí a palavra Natal e por corruptela do sul da França: Noel. O nascimento do Filho de Deus encarnado em carne e osso vivendo a história da humanidade neste segundo nascimento do Verbo Divino agora feito pessoa por amor e para nos salvar sendo um de nós. Deus se faz humano em Jesus, o Cristo de Deus. Eis o segredo do amor oblativo. Quem ama se dá a si mesmo completamente e sem esperar pagamento. Ato de quem é Deus-conosco - Emanuel. Um Deus nascido num barraco. Ou como dizem os nordestinos, Deus mais nós. Et Verbum caro factum est. E o Verbo se fez carne. Entre fraldas. Como diz o canto latino: Ubi caritas, Deus ibi est. Onde há amor, Deus aí está. Quem fica ao lado da vida e cuida das crianças é aquele que cumpre a vontade de Deus. Quem mata e destrói a vida não conhece Deus nem seu amor. 

2. A MADRUGADA DO DIA 25 DE DEZEMBRO

Nós ignoramos até hoje o dia e a hora do nascimento de Jesus. No século II celebrava-se no dia 06 de janeiro a festa do batismo de Cristo e a manifestação, em grego, epifania, de sua divindade. A partir do século IV a Igreja do oriente começa a celebrar a festa do nascimento também nesta data. No Ocidente, entretanto, tornou-se oficial celebrar o nascimento de Jesus na noite do dia 25 de dezembro a partir do ano 353. Provavelmente foi uma forma de cristianizar as festas pagãs conhecidas como "Saturnais" que aconteciam entre 17 e 24 de dezembro antecipando a festa de "Janus", o deus de duas faces. Este nascimento se dá à noite, de madrugada. Noite que é sempre filha do Caos e mãe do Céu. Engendra o sono e a morte, os sonhos, pesadelos, ternura e o engano. A noite sempre simboliza o tempo das gestações, das germinações que irromperão em pleno dia como manifestações da força vital. O que o véu esconde é a semente poderosa do dia. É portanto momento e tempo de virtualidades, de pulsões interiores, de pensarmos na preexistência das coisas e das pessoas. Entrar na noite escura é voltar para o indeterminado e enfrentar os pesadelos e os monstros obscuros. A noite de Natal é tempo de fecundar o futuro ("Quanto mais negra a noite mais carrega em si o amanhecer", Tiago de Mello) e tempo de preparação ativa do novo dia, donde brota ao alvorecer o sol invencível, a luz plena, o grito de espanto diante do Calor de Deus Eterno. Desde o século IV, um hino latino cantado na cerimônia de Natal, dizia que Cristo nasce no meio da noite e, daí o costume de assumir a meia-noite como hora do nascimento de Jesus. A Igreja proclama esta Noite Feliz, pelo canto do galo à meia noite, na conhecida missa do galo, e desde o século IV, na Basílica de Santa Maria Maior, em Roma, proclama: "Entre os resplendores da santidade, das minhas entranhas Eu te engendrei antes da luz da manhã." Um bebezinho nascendo de uma virgem para nós (puer natus est nobis) como sinal de contradição ontem, hoje e no futuro.

3. O PRESÉPIO DE SÃO FRANCISCO

Outra realidade da madrugada do natal é o presépio. Criado por São Francisco de Assis, há exatos 800 anos, no século XIII, em Greccio, Itália. Foi feito com gente e não bonecos para reviver o ambiente do nascimento de Jesus, entre camponeses, servos analfabetos e pastores malcheirosos. O presépio nos faz participantes do parto divino. Parteiros de crianças vivas e frágeis. Presépio é sempre realidade nua e crua. Lembra acampamento de sem-terra, lembra favela, lembra gente vivendo nas ruas. É um teatro vivo, carnal a nos fazer mirar as origens da humanidade. No frágil e no pequenino, vemos o eterno. Entre fraldas, vemos Deus. Nas palhas de uma manjedoura contemplamos o Salvador. Para o menino não havia lugar na cidade. Pobreza, simplicidade e humildade. Nada de torres e de mármores frios em templos gelados. Naquele presépio do Poverello de Assis, criado em 1223, na região da Úmbria, o irmão Francisco reinventou a opção pelos pobres e refez o impacto da encarnação para os habitantes de Greccio e hoje de todo mundo cristão. Ele não colocou nenhuma representação de Jesus nem Maria ou José no presépio, pois queria mostrar que ele estava presente na eucaristia que era celebrada na missa de Natal.

4. BOI E JUMENTO

Boi e jumento aquecem o Menino, na madrugada fria e na ausência de carinho desta humanidade que recebe em frágil corpo o Criador do Universo. Esta representação que nos chega dos escritos apócrifos é uma linda lenda dos primeiros tempos do cristianismo. Nenhum dos textos do Evangelho fala da presença destes animais. Seria uma reminiscência do texto do profeta  Habacuc, que diz que o Messias se manifestará entre dois animais. Um texto não canônico do século VI, intitulado Evangelho do Pseudo Mateus, faz a descrição da cena com o boi e o jumento. Este evangelho apócrifo teve grande impacto no imaginário popular. Já nos primórdios das festas de Natal mantinha-se a ligação ecológica com todo o mundo vivo. Será um jumento que levará o recém-nascido para o Egito fugindo da perseguição e haverá outro asno a carregar Jesus na entrada em Jerusalém às vésperas da morte cruenta pelas mãos de Pilatos e Herodes. Os animais representam o calor e o bioma da criação que cuida do que vive e deve viver. Quem mata vidas inocentes se torna um deicida, pois atenta contra a criação do Deus Eterno. 

5. OS ANJOS CANTORES

Anjos cantores anunciam uma boa notícia. "Glória no mais alto dos céus e paz na terra aos homens de boa vontade". Anjos mensageiros surgem nos céus para confirmar o nascimento do filho de Deus. Pela melodia que entoam prenunciam o novo tempo. São como nossa consciência artística a reforçar junto aos pastores de ovelhas e gado que os seres celestes se encontram com os excluídos da sociedade e garantem a estes sua autoestima dando valor à cada vida frágil. Os anjos na tradição cristã natalina são representados com traços infantis, como sinal de inocência e de pureza. Seriam marcas de regressão no homem adulto com saudades de sua infância. Uma valorização do Peter Pan que temos em nós e que pode também simbolizar a vitória sobre a complexidade e ansiedade, bem como a conquista da paz interior e da confiança em si mesmo.

6. ESTRELA DE BELÉM

Na ponta desta árvore e muitas vezes sobre o barraco do presépio se coloca a Estrela de Belém. Simboliza a estrela-guia dos magos e sábios do Oriente. A Estrela possui quatro pontas e uma cauda luminosa, como um cometa. Guia os sábios do Oriente por caminhos nunca dantes navegados.

7. OS TRÊS REIS MAGOS

O Evangelho de Mateus é o único a relatar a vinda dos sábios do Oriente. Sobre este texto dos evangelhos da infância foram acrescentadas inúmeras lendas, uma das quais dizendo que eles teriam vindo da Pérsia, por ser uma cultura versada na astrologia. No século V, Orígenes e São Leão Magno propõem chamá-los de reis-magos. No século VII eles ganham nomes populares: Baltazar (deformação de Baal-Shur-Usur - Baal protege a vida do rei), Belquior e Gaspar. Eles trazem ouro, incenso e mirra para o menino Rei, Deus e Salvador. No século XV, lhe são atribuídas etnia: Belquior (ou Melchior) passa a ser de raça branca, Gaspar, amarelo, e Baltazar, negro, para simbolizar o conjunto da humanidade que vê e conhece o Salvador.

8. PINHEIRO DE NATAL

No amanhecer de Deus, outro símbolo quente é a árvore natalina, um pinheiro enfeitado de luzes e de bolinhas vitrificadas multicolores. Favorecem um clima de resistência. Tradição nascida em tempos medievais, de fundo cristão, reúne dois símbolos religiosos: a luz e a vida. Peças religiosas eram representadas com grande sucesso popular nas igrejas ou seus átrios de entrada, fazendo sempre alusão ao Paraíso, representado plasticamente por uma árvore carregada de frutos, colocada no meio da cena teatral. Esta árvore do Paraíso, ficou como um dos sinais das festas de Natal celebradas a partir do século XI. A atual árvore de Natal aparece na Alsácia no século XVI e no século seguinte se espalha o hábito de iluminá-la com velas. No século XIX a esposa alemã do duque de Orleans introduz este costume na França no ano de 1837. Em 1912, Boston, nos Estados Unidos, inaugura uma árvore iluminada numa das praças centrais da cidade, e isto se espalha por todo o planeta inclusive em países não-cristãos. Este pinheiro natalino mostra que mesmo no inverno mais rigoroso, o verde de seus ramos resiste e as maçãs continuam saborosas e comestíveis mesmo depois da chegada da nova e rude estação com a neve e geadas permanentes. As maçãs (hoje as bolas vermelhas) presas aos galhos da árvore são sinal de vida diferenciada. Muitos colocam sob a árvore frutas secas e cristalizadas para mostrar o outro lado da vida. Somente neste século XX começamos a usar o pinheiro como árvore-símbolo dos vegetais que jamais perdem as suas folhas diante da dureza do inverno do hemisfério norte. Para os cristãos é a árvore de Jessé, conforme Isaías 11,1-3, o tronco de onde brota a flor e desta pelo Espírito de Javé e pelo amor de uma virgem nasce Cristo. A árvore se confunde com Maria e a flor faz germinar Jesus. Assim diz S. Bernardo: "O que não era mais que uma flor, ele o chamará Emanuel, e o que não era mais que um ramo, dirá claramente que era uma virgem." A árvore é o símbolo do humano, pois germina, cresce e morre. E da morte de suas sementes novas árvores florescem. Símbolo feminino, pois surge da mãe Terra, vive de sua seiva, sofre transformações e produz frutos.

9. COROA DE ADVENTO

Em muitos países se faz durante o advento com ramos de pinheiro uma coroa ou guirlanda com quatro velas para o tempo prévio da chegada do menino, conhecido como Advento. Estas velas simbolizam as grandes etapas da salvação em Cristo. No primeiro domingo deste tempo litúrgico, acende-se a primeira vela que simboliza o perdão a Adão e Eva. Eles morrem nesta terra mas viverão em Deus. No segundo domingo, a segunda vela acesa representa a fé dos patriarcas. Eles creram no dom da terra prometida. A terceira vela simboliza a alegria do rei David, que celebrou a aliança e sua continuidade. Esta terceira vela sempre têm uma cor mais alegre, particularmente o rosa, para distingui-la das outras mais sóbrias. A última vela simboliza o ensinamento dos profetas, que anunciaram um reino de paz e de justiça.

10. AS VELAS

Nas noites de frio, acendemos uma vela. Acender velas nos remete à festa judaica de Chanuká, que celebra a retomada da Cidade de Jerusalém pelos irmãos Macabeus das mãos dos gregos. Lembramos também da remota festa pagã do Sol Invencível dos romanos (Dies Solis Invicti). No hemisfério norte é celebrada na noite do solstício de inverno, em 25 de dezembro. Os cristãos se apropriam desta festa e transformam-na na festa da luz que é Cristo. Uma luz do céu desceu para nós (Lux magna super terram). Na chama da vela estão presentes todas as forças da natureza. Vela acesa é símbolo de individuação e de nossos anos vividos. Tantas velas, tantos anos. E um sopro pode apagá-las para que de novo possamos reacendê-las no ano vindouro. O sopro do aniversariante é mais forte que os anos que ele já viveu. Para o cristão simbolizam a fé e o amor consumido em favor da causa do Reino de Deus. Velas são como vidas entregues para viver.

11. SINOS NATALINOS

As renas carregam sinos de anúncio e de convocação. O repique e o toque do bronze mexem com as entranhas do humano. Simboliza o respeito ao chamado divino e evoca quando suspenso em torres tudo o que está suspenso entre o céu e a terra e portanto é o ponto de comunicação entre ambos. Recorda   o ambiente rural, o tempo da igreja matriz e seus sinos e toques de aviso e de convocação para a vida e para a morte. Sinos ressoam ao ouvido e no coração religioso de todos os povos.

12. A NEVE

O toque mágico do Natal no hemisfério norte vêm com a brancura e o frio da neve o que exige que as pessoas guardem-se das ruas e convivam dentro das casas. Nos falta aqui no Brasil que é um país tropical, a brancura e magia do frio ao redor das lareiras. O frio e a necessidade de casas aquecidas por lareiras sagradas são quase impensáveis para a maioria dos brasileiros particularmente no início de um verão sempre escaldante.

13. CARTÕES, PRESENTES E CEIA DE NATAL

Não nos esqueçamos dos cartões de Natal, dos presentes escondidos e da ceia familiar. A ceia nos lembra o ato de amor de Jesus. Lembra também nossa origem judaica enquanto religião que celebra a fé em torno de uma mesa de família. Alguns quebram nozes e avelãs, outros comem uvas a cada badalada do sino da meia noite. Tantos símbolos de agrupamento familiar, de ligação do quotidiano fragmentado e de festa. Festa que quer dizer quebra da rotina, momento de prazer e de glória. Tempo de benção. Tempo de reacender a esperança, de encontrar parentes, amigos e dar um sinal de paz e justiça em prol das crianças. Cantar  o hino: Gloria In Excelsis Deo sempre emociona.

14. PAPAI NOEL

Personagem destacado nestas festas é o Papai Noel. São Nicolau, chamado Santa Klaus, bispo de Myra, na Lícia antiga, sudoeste da Ásia Menor, da atual Turquia. Durante o século IV, este homem de fé marcante foi transformado em Pai universal sempre providente que oferece às crianças presentes, brinquedos e os carinhos da terceira idade. Se fez o bom velhinho. 
Contam seus biógrafos que este bispo salvou da prostituição três moças jogando-lhes, à noite, pelas janelas, três sacos de ouro como dote de casamento. Dizia-se também de forma lendária que São Nicolau no dia de sua festa em 06 de dezembro de cada ano, passaria de telhado em telhado depositando presentes nas meias colocadas nas chaminés. Ele estaria acompanhado de um "homem mau" encarregado de punir as crianças desobedientes. Em 1087 mercadores italianos roubaram de Myra as relíquias deste bispo e a trouxeram para Bari, na Itália, onde hoje se encontram. Nicolau foi substituído em alguns países pela lenda do menino Jesus que distribuiria presentes na noite do dia 24 de dezembro. Unindo estes contos às antigas lendas nórdicas, renas, trenós de neve e gnomos míticos, temos hoje todos os ingredientes de um conto infantil do hemisfério norte, capaz de comover até os adultos que ainda sonham com sua infância. Na antiguidade se trocavam presentes na festa do solstício de inverno, como um sinal de renovação. Em Roma se festejava a deusa Strenia. Nos países nórdicos o deus Odin à cavalo sobre uma nuvem trazia para as crianças recompensas ou punições face ao seu comportamento. O atual Noel, de roupa vermelha e saco às costas, foi criado pelos Estados Unidos da América na metade do século XIX como um São Nicolau transmudado em gnomo ou duende e, logo em seguida foi transformado em um simpático velhinho. Ele é introduzido na Europa depois da Primeira Guerra Mundial e se impõe pouco a pouco pela pressão comercial e daqueles que querem festejar o Natal sem referências religiosas. Precisamos voltar ao São Nicolau. Salvar a vida das crianças e dos fragilizados. Isso é o maior presente de Natal. O resto é fugaz e sem valor. Feliz Natal é abraço quente e o acalanto de uma mãe. É toque, beijo, carinho e um pão partilhado com um brinde de esperança. 

Fontes bibliográficas:
Almanach populaire catholique; 1999; 18ª edição, Revue de Sainte-Anne, Quebéc, 1998, 992 p.
Áquilino de Pedro, Dicionário de termos religiosos e afins, Santuário, Aparecida, 1994, 368 p.
Humberto Porto & Hugo Schlesinger, Dicionário Enciclopédico das Religiões, Vozes, Petrópolis, 1995, t. I e II, 2864 p.
Juan-Eduardo Cirlot, Diccionario de símbolos, Labor, Barcelona, 1985, 473 p.
Théo, L'encyclopédie catholique pour tous, Droguet-Ardant/Fayard: Paris, 1992, 1327p.

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